Liberdade é um valor

Liberdade é um valor
(Foto: Reprodução Banksy/ Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.


Meu pai me fechou em um quarto de empregada, quando eu era criança. Minha mãe era ameaçada por ele a não me tirar de lá. Não lembro o que eu tenha feito para merecer aquilo. Mas qualquer coisa era motivo para uma forma de ele demonstrar que estava me educando, sem saber que aquilo era mesmo uma violência. Sentar à mesa sem camisa, colocar os talheres no lado errado, que eu me lembre, eram sempre coisas assim que me levavam a um minúsculo quarto por um gesto bruto dele e lá me deixava por horas, isolado do contato com meus irmãos e minha mãe. Até que ele decidisse que eu podia sair.

Meu pai era militar. Não guardo mágoas deste tempo e nem do meu pai; ele provavelmente não sabia que aquilo era errado. Hoje sei o significado da falta de liberdade e valorizo-a mais que tudo. Lembro-me de um dia em que meu pai me censurou, porque eu estava lendo um livro que chamava Brasil Nunca Mais. Disse que eu não devia ler aquilo e tirou o livro de mim, só duas décadas depois eu achei o livro novamente, numa livraria em Porto Alegre, e então comprei e li todo. Não há liberdade pior a ser tirada de uma pessoa do que a liberdade do conhecimento. A liberdade de ensinar, de aprender. Sem ter que ser numa direção apenas, numa ideologia só, ou dentro de um paradigma, como se as ideias coubessem onde a gente quer que elas estejam, como meu pai queria que eu estivesse, fechado, num quartinho.

A falta de liberdade vem sempre associada a um ato de opressão, a formas mesmo sutis de violência. Aprendi, como professor, o valor de oferecer e preservar liberdades. A violência não me fez violento, a restrição de liberdade me fez ansiar ainda mais por ela, porque preciso ser justo: meu pai ofereceu muito também em proteção, apoios, alimentos e cuidados. Do jeito torto dele, numa época em que a informação era menor e o modelo de vida e sociedade eram outros, eu procuro entender que ele agia daquela forma porque não sabia cuidar de outro jeito. Hoje me esforço para que meu filho e que os filhos que ele tiver sejam educados com outros valores, outros exemplos, para que cresçam livres, sabendo o valor da liberdade, o quanto ela é uma conquista e como precisamos dela para viver plenamente.

A liberdade de crenças, de mundos, de escolhas. A liberdade de sonhos, em um tempo principalmente, de tantas distopias. Uma liberdade que inflama meu olhar quando eu falo com meus alunos, que me impede de dar a eles uma visão deprimente, ou derrotista do sentido das coisas ao seu redor. A liberdade é um bem-estar e ao mesmo tempo um anseio. Ela preenche a falta que qualquer coisa faz por não ser mais possível. Quando se envelhece, substituem-se os sonhos, olha-se a vida em perspectiva. Mas sendo-se livre, tudo parece ter valido à pena.

Outubro é o mês do professor. O ato de educar só faz sentido se for livre, libertário e libertador. Ainda me emociono com a surpresa de um aluno frente ao que descobre, ainda me vejo saindo todas as vezes daquele quarto minúsculo e talvez por isso mesmo sinto uma necessidade incontrolável de poder bater asas e voar, sem sentir-me preso. Só quem viveu o prazer que isso traz pode ser capaz de jamais agir contra a liberdade, não importam as restrições que se teve. Penso que é mais livre quem sabe a força que faz nos punhos a algema que nos prende. É preciso ensinar a estas gerações novas o valor da liberdade sem que tenham que perdê-la para aprender só depois o quanto ela faria falta.

Geder Parzianello, 55, é professor de mora em São Borja – RS.

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