O ‘creme’ compensa!
(Arte Revista CULT)
A narrativa redentora da Lava Jato avança. Enquanto as esquerdas são destruídas ou fazem autocrítica, os delatores corporativos já foram perdoados
O Fantástico deste domingo (16) foi dedicado ao “Brasil da Corrupção” e começou com um manifesto com caras indignadas de pessoas comuns dizendo “chega, não aguento mais, chega de corrupção, chega, chega e chega”, usando a linguagem das redes sociais.
O que se viu foi uma peça de posicionamento midiático que não toca nas questões que importam e safam Michel Temer do atual momento de condenação de um sistema. Obviamente o debate público é fundamental e tudo o que estiver provado e for ilegal tem que ser punido não importa o partido, a biografia etc.
O que une, neste momento, o pior discurso da direita e o pior discurso da esquerda é a generalização, a “fulanização” e o discurso de salvação. Nem uma operação como a Lava Jato e nem uma só liderança podem “salvar” o Brasil, e ficam cada vez mais claras as estratégias que amesquinham o debate:
1. A generalização que joga “todos” no mesmo valão, onde esse “todos” é apenas a classe política. O valão da política é “o câncer” a ser extirpado. Empresas, mídia e judiciário são ou coadjuvantes ou sequer aparecem.
2. A Odebrecht virou sinônimo de empresa corrupta, quando é modelo do sistema e de outras corporações. Seu modus operandi é colocado como “exceção” e não como “modelo de negócio” do capitalismo brasileiro: financiamento ilegal dos partidos, financiamento legal para benefícios comerciais, influência direta no Congresso, lobby, superfaturamento, e bilhões em lucros. O capitalismo da predação do comum não é questionado como sistema base da corrupção.
3. A demolição narrativa se concentra na direção das esquerdas. Por mais que todos os envolvidos na Lava Jato sejam citados, a narrativa demonizadora se volta contra as esquerdas. Os únicos casos tornados narrativas (políticos como Aécio Neves e outros foram apenas citados) no “Fantástico da Corrupção” foram o “PT dos Aloprados” e o desvio de cerveja, literalmente, para Caixa 2; as citações da Justiça a Lula e ao PCdoB – esta de forma debochada, o partido não teria importância nem para ser comprado no esquema de corrupção, diz um delator rindo!
4. O lulismo é, por motivos distintos, o alvo da direita moralizante e da autocrítica das esquerdas. Lula se tornou a figura a ser destruída exemplarmente como castigo para a classe política em geral e como castigo para a esquerda que errou.
5. O creme e o crime compensam no castelo “dos caras”. A matéria sobre “como vivem, o que comem, onde moram” os delatores da Lava Jato, mostra uma casta financeira que já se safou, ao colaborar com a Justiça. Uma casta socialmente e pragmaticamente perdoada. Todos os delatores da Lava Jato cumpriram pena mínima, são mostrados vivendo em condomínios de luxo, casas com piscina e conforto, com meias e tênis de marca escondendo a tornozeleira eletrônica; um “castelo de caras” da delação. Marcelo e Emílio Odebrecht tem essa tranquilidade da elite financeira que vai se safar. Os delatores corporativos não terão suas vidas e/ou seus negócios destruídos. Os capitalistas tem a benevolência social.
6. Não fale em corrupção, trabalhe como Temer! No meio do Fantástico sobre “O Brasil da Corrupção” foi mostrado Michel Temer trabalhando no domingo para aprovar a Reforma da Previdência que vai expropriar direitos de todos os brasileiros de uma forma escandalosa e definitiva. O tom da matéria? O governo não está parado, a Reforma vai ser votada. Temer tem pressa. As delações contra Michel Temer, seus ministros, lideranças, senadores, deputados, a República de corruptos que tirou Dilma Rousseff do poder em nome da moralidade não é questionada, não faz parte da narrativa! O que está sendo negociado na República de Temer, o que vai ser perpetrado e negociado com a mídia, judiciário, corporações não é pauta do Fantástico!
7. “O Dragão da maldade contra o santo Guerreiro”. O silêncio narrativo e a perplexidade das esquerdas deixa em cena um vazio que vem sendo ocupado por essa peça de uma moralização difusa e genérica. A Lava Jato como a solução dos problemas do Brasil! Outra narrativa nessa peleja de “O Dragão da maldade contra o santo Guerreiro”, para homenagear Glauber Rocha, traz “Lula contra a Lava Jato”, mas também parece insuficiente diante da milionária contribuição de todos os erros, acertos e contradições desses últimos anos. A questão é: Mas quem está “acima” das condições de possibilidade de um país ou de uma sociedade?
8. As condições de emergência de novos arranjos e experimentações políticas já existem, os valores e desejos circulam: participação e democracia direta, midialivrismo, novas economias, novos sujeitos dos discursos, a diversidade como valor, emergência de movimentos de novo tipo, para além das overpolarizações, para além dos lovers e haters. A Folha de S. Paulo chamou isso de “sartups políticas”, dando uma “embalagem” nova para movimentos de certa direita jovem, mas podemos chamar também de cultura de redes, nowtopia, ruidocracia, laboratórios de inovação social, frentes e grupos suprapartidários, movimentos e processos que tornam a alargar o horizonte dos possíveis.
(1) Comentário
Lucidez total na descrição das microfísicas do poder da mídia. Grato, Ivana!