Pedaços de mim, pedaços de nós: Genet, Escobar e ‘O balcão’

Pedaços de mim, pedaços de nós: Genet, Escobar e ‘O balcão’
A atriz e produtora Ruth Escobar com o dramaturgo francês Jean Genet (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Minha mãe Ruth e meu pai Wladimir se conheceram num antiquário na Rua Augusta e viveram uma relação ardente, passional. Construíram juntos muitas coisas, como o Teatro Popular Nacional (um palco erguido na carcaça de um caminhão), o Teatro Ruth Escobar e os diversos espetáculos produzidos dentro dele: desde Brecht até autores como Fernando Arrabal com O cemitério de automóveis (1968) e Jean Genet com O balcão (1969), dirigido pelo argentino Victor García.

Antes de falar de Victor, é preciso falar da relação de profunda amizade entre Cacilda Becker e minha mãe, Ruth Escobar. Cacilda era seu esteio, sua referência e protetora. Muitas vezes lhe emprestou dinheiro para fazer a feira ou o supermercado. Muitas vezes fui “ninada” por ela, que me contava estórias enquanto me deliciava com chocolates que ela trazia e com a sua voz, que me embalava até dormir.

Minha mãe conheceu Victor em Paris em 1967, em um encontro no Cafe de Flore após assistir a Cemitério de automóveis. A condição do diretor para dirigir o espetáculo no Brasil era montá-lo em uma garagem e não em um teatro – e assim aconteceu. Wladimir Pereira Cardoso, meu pai, desenvolveu lindamente o cenário, com carcaças de automóveis, uma grande rampa e cadeiras giratórias para o público. A partir daí, Victor e minha mãe tiveram uma relação que marcou a vida dela, de amor e ódio, de quase irmãos. Ela contava que Victor pedia mais, sempre mais, até a exaustão. Dizia: estou falida! E ele respondia: hoder, mi amor, si quieres la gloria, pagarás! No tengo nada que ver con este pequeño mundo de mierda burguesito, con la casita, los niñitos y otras tonterías! Seguiram juntos, em diversas montagens.

Muitos fatos marcantes aconteceram nesse período. Censura, o assassinato dos estudantes Edson Luis e José Guimarães, as passeatas com Vladimir Palmeira, Zé Dirceu e Luís Travassos das quais minha mãe e Cacilda fizeram parte e ajudaram na segurança. Assunta Perez, atriz de Cemitério dos automóveis, chegou a ser presa. Um grupo de 20 homens do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), armados com cassetetes, facas, socos-ingleses e bombas de gás lacrimogêneo, invadiu o Teatro Ruth Escobar e espancou atores e parte do público de Roda viva, depredando a Sala Gil Vicente.

Em novembro de 1968, Cacilda convenceu minha mãe a passar o Natal em Nova York com ela, dar um tempo do meu pai. A relação deles estava se acabando, mantinham apenas o compromisso profissional de finalizar O balcão. Cacilda a ajudou com um empréstimo no banco e foram juntas respirar um ar menos AI-5. Foi nessa viagem que elas conheceram a companhia de teatro The Living Theatre e que Cacilda revelou seu desejo de interpretar a personagem Irma e de ser dirigida por Victor García. Combinaram que assim que Cacilda terminasse a temporada de Esperando Godot, atuaria em O balcão.

Quando voltaram de Nova York, na segunda semana de janeiro de 1969, minha mãe foi presa em uma casa na Rua Petrópolis por sete homens à paisana, armados com metralhadoras. Levada ao Segundo Exército, foi pressionada a dar o endereço do ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri. A prisão durou alguns dias. Chegou a ser interrogada pelo chefe da Operação Bandeirantes, que fazia perguntas do tipo: era membro de alguma organização clandestina? Por que encenava o espetáculo Roda viva em seu teatro? Por que Plínio Marcos punha um general defecando num capacete? Cacilda visitava o prefeito de São Paulo por dias, inclusive às 7 da manhã, até que minha mãe fosse liberada. Em 6 de maio de 1969, sofreu um derrame cerebral em plena apresentação de Esperando Godot e, depois de 38 dias, nos deixou. Foram dias, meses, os mais tristes de minha mãe.

Meu pai, nessa época, morava dentro do teatro construindo o cenário de O balcão. Durante cinco meses, 18 pessoas trabalharam 20 horas por dia. Uma cozinheira preparava as refeições para todos. Na realidade foram nove meses de preparação: o cenário inteiro teve 86 toneladas de ferro, o teatro foi praticamente destruído, um fosso de mais 25 metros de altura foi criado. Meu pai buscou referências em Mike Bogdanov, no Globe Theatre de Londres e também no Teatro Total de Gropius. Criou um espelho parabólico escavado no concreto do porão, cinco metros abaixo do palco, formando uma concha elipsoidal com plástico espelhado, como um farol de automóvel. Um módulo de acrílico e ferro vazado era o palco móvel onde aconteciam muitas cenas. Do urdimento descia uma rampa em espiral de nove metros de altura. Cinco elevadores individuais e dois guindastes suspendiam duas gaiolas. Os atores também usavam as plataformas, que funcionavam como pequenos palcos individuais.

Nunca me esqueço da minha avó Marília acidentalmente pendurada a nove metros de altura quando visitamos o cenário para checar um figurino ou algo assim.

O balcão estreou em dezembro de 1969 e se apresentou até 16 de agosto de 1971. Em 5 de maio de 1970, a atriz Nilda Maria desapareceu. A apresentação aconteceu mesmo assim. No segundo ato, minha mãe (que agora interpretava Irma) anunciou ao público que Chantal, a revolucionária, estava presa e incomunicável, e que sua cena seria suspensa do espetáculo até a sua libertação.

Eu conheci Jean Genet com seis anos de idade. Ele passou cerca de um mês em nossa casa no Sumaré. Chegou com a energia da participação de fortes protestos na França, dois deles junto com Marguerite Duras, pela melhoria das condições precárias de trabalhadores imigrantes. Indignado com a prisão de seus irmãos líderes do Panteras Negras no final de fevereiro de 1969, voou de Paris ao Canadá para cruzar ilegalmente a fronteira até os Estados Unidos, pois seu visto havia sido negado pelo país. Durante dois meses e meio, participou de diversos protestos e palestras declarando sua solidariedade à organização. Seu mais importante discurso, feito em New Heaven para mais de 25 mil pessoas, foi publicado pelos Panteras Negras em dois artigos: “Aqui e Agora para Bobby Seale” e “Discurso de maio”. Genet voltou para Paris e em junho estava em São Paulo para conhecer a montagem de O balcão.

Ruth e Victor (1)
O diretor argentino Victor García e a atriz e produtora Ruth Escobar (Foto: Arquivo Pessoal)

Contrariando a sua fama de mal humorado e carrancudo, Genet brincava comigo de cavalinho quando não estava ocupado ou absorto em seus pensamentos. Me lembro uma vez de invadirmos um supermercado e roubarmos doces e espoleta para articular nosso pequeno exército revolucionário, pois ele já havia nos ensinado a cerrar os punhos como os Panteras Negras. Eu ainda era a caçula quando Genet estava conosco. Casada com o filósofo Nelson A. Aguilar, minha mãe estava grávida de três meses do meu irmão. Ela conta que, de madrugada, Genet invadia o quarto deles, se enfiava na cama, esfregava as mãos e dizia: “Allors…. vamos lá, crianças, vamos conversar! Basta de dormir, vocês têm a eternidade para dormir!”. Passavam noites gargalhando das suas histórias sobre transgressões no exército francês na Síria e no Marrocos, sobre aventuras cruzando as fronteiras como um refugiado.

Genet não gostava de dar entrevistas. Quando alguém solicitava um autógrafo em um dos seus livros, ele dizia à minha mãe ela os assinasse, que falsificasse a sua assinatura, “já que a vida era puro estelionato”. Assistiu ao primeiro ato de O balcão na plateia, depois se deslocou para a coxia e para outros locais do teatro para ver o palco de diferentes perspectivas. Ao final do espetáculo, esperava minha mãe no camarim. Fez questão de cumprimentar todos os atores e não cansava de dizer: C’est très, c’est très beau.

Ele gostou muito do espetáculo, mas o teatro em si já não era o que o mobilizava naquele período. O coração de Genet estava com os Panteras Negras, com a causa da Palestina. Em sua visita ao Brasil, ele produziu um dos seus textos mais importantes: o prefácio do livro Soledad brother: as cartas de prisão de George Jackson, publicado em mais de 12 línguas no ano seguinte – no Brasil, o livro saiu pela Arcádia, em 1972.

Conta minha mãe que um dia foi surpreendida por um telegrama da esposa do governador de São Paulo, Maria do Carmo Sodré, que queria conhecê-lo. Genet proferiu uma série de palavrões em francês, pois tinha pleno conhecimento da ditadura no Brasil, mas minha mãe o convenceu a encontrá-la, pois era necessário libertar Nilda Maria e também Maria, tia de Lamarca, ambas presas no Presídio Tiradentes. Os netos de Maria estavam desaparecidos em alguma unidade da Febem. Assim, conseguiram uma carta para visitá-las e localizar as crianças.

O elenco de O balcão foi enorme e houve algumas substituições e revezamento de atores, mas relembro aqui alguns: Raul Cortez e Rofran Fernandes, que interpretaram o Bispo; Célia Helena como Carmem, Sérgio Mamberti como o Juiz, Jonas Melo como o Carrasco, Neide Duque como a Ladra, Cláudio Mamberti como o General, minha mãe Ruth como Irma; Assunta Perez, Tereza Rachel e Elizabeth Gasper; Paulo César Pereio como Chefe de Polícia, Ney Latorraca como Sangue, Nilda Maria como Chantal, Carlos Augusto Strazzer como Roger, e os 29 atores que compunham os Revolucionários, além de toda a equipe técnica do espetáculo, formada por 23 pessoas.

Revi a última entrevista de Genet à BBC, de 1985, em que ele afirma: “você disse l’amour? eu escutei la mort“. Genet aponta ser a família, provavelmente, a primeira célula criminal da sociedade.

Ambientada em um bordel durante uma revolução em um país sem nome, a encenação do sadomasoquismo nas figuras das autoridades em O balcão representa hoje a manipulação das notícias das grandes mídias e suas muitas mentiras. A cena da auto-castração do revolucionário Roger faz uma alusão aos “pseudo-revolucionários”. Roger não consegue sair do bordel.

O que Genet pensaria hoje sobre Trump ou sobre uma família miliciana e seus sadismos praticados no capitalismo tardio? De pretas e pretos assassinados a cada 15 minutos pela polícia no Brasil? De seus projetos de eugenia para aniquilar grandes populações? Ou das recriações mais bizarras dos estados profundos do poder econômico, fabricando golpes, genocídios, guerras híbridas e destruindo portos e rotas?

Minha mãe passou mais de uma década esquecida em uma cama. Quando visitei meu pai pela última vez e lhe perguntei o que representou O balcão em sua vida, tive como resposta: “foi apenas mais um trabalho. O poeta nômade e o maior perito ao seu modo, da geopolítica, nos ensinou que a linguagem da colonização se aprende na prisão. Seja ela qual for. Nessa tríade afetiva, todos eles esperavam a morte”.

Hoje, estamos todos descendo ao inferno, para encontrar a luz. Revi novamente a entrevista de Genet, em que diz: “Deveriam ter conduzido a revolução como Lênin, mas não o fizeram!”.

Inês Cardoso é documentarista, desenvolve alguns trabalhos na área de curadoria em cinema e teatro. É colaboradora do MSTC, onde faz parte do núcleo coletivo de cinema da Ocupação 9 de Julho e do MTST. Seus curtas metragens percorreram diversos festivais e foi homenageada com uma retrospectiva no Festival de Cinema de Tiradentes, junto com Gianfrancesco Guarnieri e Eduardo Coutinho. Realizou videoinstalações apresentadas no Videobrasil, espaços culturais e SESC.


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