“O jardim – quase um oceano”
(Foto: Bob Sousa)
Fotos de Bob Sousa.
Ὁ βίος βραχύς, ἡ δὲ τέχνη μακρή, ὁ δὲ καιρὸς ὀξύς, ἡ δὲ πεῖρα σφαλερή, ἡ δὲ κρίσις χαλεπή.
(A vida é breve, a arte é longa, a oportunidade passageira, a experiência enganosa, e o julgamento difícil.)
Hipócrates, Aforismos
O amor é breve ou longo, como a arte e a vida.
Guimarães Rosa, Orientação
Nesse romance (…), a tônica principal está no contraste entre a longevidade da arte e a brevidade da vida.
Meiko Shimon, O século de Kawabata
Um jardim para educar as bestas é um duo para piano e voz. No caso, uma voz narrativa que emana de um corpo tão eloquente quanto ela própria. Criação coletiva do ator Eduardo Okamoto, do músico Marcelo Onofri, da pesquisadora Isa Kopelman e da produtora Daniele Sampaio, o trabalho – em cartaz no Solarium do Sesc Vila Mariana até o próximo dia 23 de abril – toma por base o acontecimento central de “A lenda do oleiro Saburo e da senhora Fuyu”, segundo capítulo do romance Homens imprudentemente poéticos, de Valter Hugo Mãe, para expandi-lo e articulá-lo aos universos narrativos de Ariano Suassuna, Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. O que poderia soar pura justaposição de textos, bem ao gosto dos mosaicos de citações pós-modernos, reveste-se aqui de uma intertextualidade das mais genuínas (porque baseada na pura etimologia): dentre textos, entre textos, intertextos, tramas que se entrelaçam no de dentro delas, tecidos que se efabulam uns nos corações dos outros.
O romance do escritor português se passa no Japão antigo. Na transposição da fábula, o oleiro Saburo transforma-se no sertanejo Seu Inhês, que constrói um jardim de pedras depois de advertido pelo vizinho vidente de que uma onça Caetana (no original, um bicho imaterial) matará sua esposa: lá, a senhora Fuyu; aqui, a sertaneja Marly. (Inhês e Marly são personagens da imigração japonesa na Paraíba homenageados pelo espetáculo.) O jardim constituiria uma espécie de escola para os animais: a educação pelas pedras. Pelas pedras da beleza.
Curioso pensar que a equipe de criação não tenha partido de um material narrativo originalmente japonês, preferindo antes a mediação da fábula pela língua portuguesa. Mais curioso ainda é constatar que a epígrafe do livro de Valter Hugo Mãe é extraída do romance Kyoto, de Yasunari Kawabata (1899-1972), cujo universo sensorial – ligado aos antigos costumes japoneses – relaciona-se diretamente com a proposta da encenação. Que mané curioso o quê?, diria compadre meu Quelemém. De mediar temporalidades e distâncias extremas é que vive a proposta dramatúrgica do espetáculo. Portugal desembarca no Japão no século 17. Os japoneses aportam em terras brasileiras na virada do século 19 para o século 20. O Brasil refugia-se na terra do sol nascente e na nação mais ao Ocidente do continente europeu a partir do final do último século. De repente, nos damos conta, então, de que Japão, Portugal e Brasil não distam no tempo e no espaço. Privam de muitas temporalidades inconclusas e são, de fato, imediações.
Tão rica quanto a articulação conceitual da dramaturgia é a manifestação sensível do espetáculo propriamente. Um jardim para educar as bestas precipita-se do ambiente da palavra literária para a cena – ritualisticamente instaurada, mas, pela via da ambivalência, sem fazer muita cerimônia. Como se o rigor, notável, diga-se de passagem, na criação da música e da atuação não precisasse rivalizar com a simplicidade de ambas as realizações. A música original, executada ao vivo pelo oleiro Marcelo Onofri, funde-se à atuação do artesão Eduardo Okamoto de maneira muito orgânica e delicada.
O diálogo de Okamoto com o butô ponteia os opostos e converte o sombrio em irradiação. O que a plateia vê em cena é um intérprete em estado luminoso. A força da voz contrasta com a fragilidade do movimento – seja em sua execução técnica, como a expressão de músculos e nervos, seja em seu aspecto filosófico, ligado à ideia de tempo e de duração –, levando o espectador a usufruir de um pequeno vislumbre da própria beleza. Beleza esta revelada na transitoriedade da impermanência. O corpo japonês é também um corpo sertanejo. Resistente e paciente. Não domesticado pelas imposturas da civilização, mas ancestralmente civilizado pelos polimentos do espírito.
A criação do espetáculo está sedimentada por uma surda indignação. Após a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, Eduardo Okamoto foi provocado por um professor de butô, em um festival na Alemanha, a revoltar-se na própria carne, em alusão ao trabalho-manifesto de Hijikata Tatsumi, um dos criadores do butô. “Naquele momento, eu pensei que, num contexto de barulho, exposição nas redes, disputas de narrativas, poderia haver revolta no silêncio. Seria possível não reagir ao que está dado, por princípio, para tentar imaginar outra coisa?”, declara o ator.
Da mediação das extremidades geográficas e culturais o trabalho chega então à mediação das ideologias extremas. A consciência da beleza do jardim secreto que cada indivíduo pode cultivar talvez lhe sirva de pequena chama, disposta a lançar sua luz possível sobre os processos de desumanização que entenebrecem o homem. Assim, vida e morte – a grande tensão ambivalente de que se abastece todo o espetáculo – são mediadas no corpo que se movimenta a fim de revelar o quão subversivo pode ser este mesmo corpo e seus movimentos. De mediar extremos e extremidades os criadores de Um jardim para educar as bestas sabem muito bem. Há muito do sertão de Euclides, Rosa e Ariano no Genji Monogatari. Há muito de Yasunari Kawabata em Valter Hugo Mãe. E em nós também.
UM JARDIM PARA EDUCAR AS BESTAS
Sesc Vila Mariana – Solarium
Rua Pelotas, 141 – Vila Mariana – São Paulo, SP
Sábados e domingos, às 17h
Duração: 55 minutos
Classificação: 12 anos
Até 23 de abril
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.