A irracionalidade e a nova caça às bruxas

A irracionalidade e a nova caça às bruxas
Fotografia de Adriana Valentin para o projeto Velada (Foto: Adriana Valentin)

 

Por Mayã Fernandes

O ano era 2016 e o heterossexualismo no Planalto Central era lei.
Ônibus lotado, eram 16 horas quando os milicos resolveram abordar. Em ordem, como as fileiras dos ministérios, os candangos desceram um por um sem pressa.

Com a certeza no olhar, o estereótipo foi a premissa e a ordem foi dada: encosta aí, parada aí que o azar é seu. Baculejo no DF só se for com doses de escrotidão.

Mãos no corpo, apalpavam os seios e questionavam as anomalias. Brasiliense raiz não sabe o que é subjetividade, não entende o que foge dos manuais e tem medo. Não se pode reclamar sobre a incursão ou o gambé revista sua casa, seu íntimo. Quem foge das linhas é jogado à margem. Quem vive na beira está sujeito à violação. A polícia está a serviço da padronização: objetividade vestida de azul e amarelo.

Fora do imaginado, a ausência não presume inocência e cisma. Ao fim, a humilhação fica completa com aplauso do povo. Pessoas cansadas se contentam com o pouco que ganham, com a violência não sentida na pele e a empatia não capturada com os olhos.

Lembro que neste dia chorei na rua, no chuveiro e só parei de chorar depois que se acabaram as lágrimas. Na época ainda era bolsista e estava prestes a terminar o curso de filosofia pela UnB. Anos depois fui entender de fato o que tinha acontecido. Hannah Arendt em sua obra Origens do totalitarismo explica que o fascismo sempre está à espreita, que permanece dormente dentro de cada indivíduo à espera de um novo líder. As massas esperam que surja da ralé, do fracasso, um líder para ressignificar a existência.

Em 2016 assistimos ao início do golpe disfarçado de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. Desde então, os comentários e discursos de ódio contra as mulheres e as populações LGBTIQ+ tornaram-se rotina. Para mim, mulher lésbica e periférica, foi pior que um soco no estômago. Além do machismo estrutural do próprio curso de filosofia, ainda tinha que me preocupar com o julgamento da população em geral, que decidia se por meio da minha aparência poderia sofrer qualquer tipo de abuso policial.

Desde então a situação piorou. Com a ascensão do governo bolsonarista e a quantidade exaustiva de propagandas fascistas por detrás das fake news e das religiões evangélicas formaram um vínculo entre um líder raivoso e as massas. No texto A Teoria freudiana e o modelo fascista de propaganda, Adorno (1951) elucida que os modelos de propagandas são baseadas em um modelo heteronormativo apoiado em uma moral cristã, que guarda em si resquícios de machismo e lgbtfobia.

Observando as propagandas políticas nas eleições de 2018 são evidentes as crescentes informações alarmistas, que utilizavam como base acusações ilógicas, como um “kit gay” que foi supostamente distribuído em escolas, que na verdade tratava-se de uma inciativa denominada “Escola sem homofobia”, projeto do governo federal de 2004 que não foi colocado em prática. Em face das fake news, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou a remoção de vídeos da internet que geravam a desinformação, prejudicando o debate político. Mesmo com a proibição, os vídeos continuam circulando na rede. Pode parecer irracional esse tipo de pensamento, mas já fui interrogada inúmeras vezes sobre a existência da mamadeira de piroca, e por mais que explicasse o absurdo de tal ideia, é muito difícil ter crédito na argumentação quando se compete com homens que se dizem de bem.

Ainda relembrando Adorno, percebo que o processo de desindividualização, marcado pela irracionalidade e propensão à violência, está ligado a questões psicológicas freudianas. Na busca por respostas que expliquem como ocorre a transformação do sujeito em massa, os indivíduos de um grupo combinam-se em uma unidade e se ligam por meio de uma caracterização artificial. Para Adorno, no exército, quase não se faz menção a qualquer tipo de amor entre os membros, sendo a união entre militares mediada pelo patriotismo. Esse amor os liga de modo artificial e faz com que convivam harmoniosamente dentro do grupo, mas que não compreendam outras formas de vínculos amorosos que ocorram fora de seu meio social. Esse amor torna-se então modelo para seus relacionamentos.

O discurso amoroso quase não é utilizado pelos líderes fascistas. O conceito de amor é sublimado, sendo destinado de modo fanático a algo metafísico. Deste modo, parece-me que aqueles que compartilham do amor mediado excluem a sua subjetividade em troca da aceitação do grupo. Já o amor fora da heteronorma não é um amor mediado, existe o sujeito que se afirma diante da sociedade para conseguir sobreviver com sua subjetividade, experimentando um amor espontâneo e não controlado por mediadores. Esse amor espontâneo é reprimido. Toda e qualquer expressão de individualidade e a recusa por não fazer parte do grupo, faz com que essas pessoas virem alvos. A única forma de aceitação dos grupos minorizados pelo fascismo é através da obediência.

A história da desobediência das mulheres dentro da sociedade cristã já cansou de ser revisitada. Eva, quando decidiu comer a maça, leva à ruína aos homens por meio do pecado. Ultrapassando os cristãos, temos nos antigos gregos o mito de Pandora, uma mulher que veio para punir os homens pela desobediência. De todo modo, entendo que nossa história é marcada por mulheres que punem, que traem e que levam à desgraça dos homens quando não são controláveis. Justamente por isso, a aderência a uma religião de matriz africana me trouxe a liberdade sem culpa. Ser mulher no candomblé é ser resistência e aos olhos dos orixás, as injustiças são pagas na terra, nada de uma vida prolongada após a morte e uma sensação de inércia.

Diante da ascensão das massas fascistas no Brasil, a segurança da parcela da população que não declara obediência está em risco. O medo é real. Como resistência, esses grupos passam a buscar formas de organizações destoantes do modelo fascista, baseadas sobretudo na ideia de amor espontâneo e empatia. A quebra do padrão heteronormativo é revolucionária e, por mais que incomode os fascistas, essa ruptura continua ganhando força e se alastrando, tornando-se afago em meio à violência.
Espero que com a força das orixás seja possível sobreviver aos tempos sombrios e fazer justiça. E que a sabedoria de Nàánàá ilumine a angústia daquelas que se sentem sozinhas.

Mayã Fernandes, 26 anos, é lésbica assumida, candomblecista com orgulho e hoje doutoranda em Artes Visuais na UnB

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