O inventor da intuição
Irene Machado
Nas raríssimas exibições de um filme de Robert Bresson em algum canal da televisão por assinatura, não é de estranhar que o release da sessão seja acompanhado por um elogio ao canal pela audácia da iniciativa.
Afinal, o cineasta nunca fez concessões nem ao espetáculo e muito menos às suas estrelas, mantendo-se concentrado em seu cinema intuitivo de invenção.
Se a surpresa fica justificada quanto à presença de Bresson na programação de TV, o que dizer, então, do projeto editorial que colocou nas estantes das livrarias brasileiras não um, mas dois livros relacionados a tal cinema? No mínimo, há que se louvar não só a bravura, mas o reconhecimento de obras comprometidas com o pensamento e o ato de criação.
O empreendimento duplo traduz o livro-roteiro do filme O Processo de Joana d’Arc (1962) e o estudo de Jean Sémolué Bresson ou o Ato Puro das Metamorfoses (lançado em 1993). Cabe ao leitor brasileiro desfrutar de obras maduras sobre a estética de Bresson (1901-1999), que refletem suas Notas sobre o Cinematógrafo (1975).
Os dois livros oferecem a possibilidade de entrar em contato com ideias fundamentais do impulso passional que, na cultura do século 20, se consagrou como cinefilia, a paixão pela tecnologia da imagem em movimento, do som, transformada em jogo de sensibilidades.
Em Bresson, a cinefilia manifestou-se na produção de ideias estéticas, que em seu cinema nasce da escrita de som e imagem em movimento. Denominou cine-escritura a plasticidade das criações do cinematógrafo, base de seu pensamento audiovisual.
No livro-roteiro, Bresson oferece um filme-escrita baseado nos autos do processo condenatório de Joana d’Arc. Além do roteiro, a edição reúne 53 fotos de cena que revelam um pouco dos procedimentos estéticos da construção do filme.
Roteiro e recorte de cenas acabam problematizando as ideias cinematográficas do diretor, como, por exemplo, sua concepção particular de cine-escritura e de modelo em oposição a ator. Centrado no processo da condenação de Joana, o roteiro recompõe as palavras entoadas, mas que não tinham sido ouvidas.
Ao compor o retrato da voz, Bresson atualiza os pronunciamentos de Joana perante os juízes de Rouen em 1431 (agora reatualizados em português). Com isso, reforça a plasticidade do cinematógrafo, que não só registrava imagens em movimento e os sons, mas também se mostrava capaz de falar e projetar os movimentos num gesto que na tela compunha uma força tátil.
Cine-escritura não é nada mais do que a grafia híbrida que o cinematógrafo constrói plasticamente.
As particularidades desse sistema de escrita, em que os personagens não figuram como atores, mas como modelos, foram examinadas por Jean Sémolué no livro Bresson ou o Ato Puro das Metamorfoses. Trata-se de uma análise de 14 filmes com base no sistema estético do diretor e de seu diálogo com outros cineastas e escritores.
Se a tarefa é explicitar o gesto de uma criação no estado puro das experiências que não conhecem limite, é para o “como se faz um filme” que se dirige o estudo de Sémolué. É nesse processo que ele problematiza a metamorfose que começa no enfrentamento da transformação técnica em palpitação de movimento sensorial.
Essa metamorfose acompanha o trabalho de criação de modelos baseados no personagem. Longe de ser a representação de um papel, o personagem não é senão um modelo produzido pela cine-escritura. Prova disso é que ele nem sequer fala a linguagem do dispositivo e se coloca, em relação a ele, como uma pessoa estrangeira que é uma presença mas não fala a língua do lugar.
A linguagem com a qual interagimos é da natureza do cinematógrafo.
Enquanto Sémolué situa em seu horizonte o “como” se faz um filme, o leitor de seu livro se pergunta: como se faz a leitura de um filme de Bresson sem ferir as vinculações com o cinematógrafo?
O ponto de partida é a introdução, na primeira parte do livro, do surgimento de Bresson no contexto do cinema francês do século 20. Daí evolui um método de análise que procura traduzir cada um dos filmes em termos de sua cine-escritura, o que impede o deslize para o fechamento no enredo.
Abre-se então a possibilidade de comparações, por exemplo, com as traduções livres que Bresson realizou de obras literárias: Bernanos, Diderot, Dostoiévski. Ainda que continue referindo-se a esses trabalhos como adaptações, o fato é que a análise segue o resultado como cine-escritura.
Vale ressaltar o procedimento dedicado à matéria sonora dos filmes. Sem se limitar às músicas, Sémolué esmiúça a máxima de Bresson segundo a qual “o cinema sonoro inventou o silêncio”. É no balanço das reverberações desse pensamento que o cinematógrafo mostra a que veio.
Irene Machado é professora na pós-graduação em comunicação e semiótica na PUC-SP
O Processo de Joana d’Arc
Robert Bresson
Editora É
144 págs.
R$ 39
Bresson ou
O Ato Puro das Metamorfoses
Jean Sémolué
Editora É
372 págs.
R$ 69
(1) Comentário
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“O cinema sonoro inventou o silêncio”, frase de Bresson, que pode servir de mote para um encorajamento à leitura (do cinema) na era do excesso, da repetição, inflação e usura das imagens. E o texto de Irene Machado instiga a repensarmos um mapeamento seletivo das imagens e sons essenciais nos tempos cruéis da iconofagia. Bravo!