A infância de olhos não tão livres
(Foto: Marco Weyne)
Excesso de telas, falta de alimentação natural, de ar livre e de contato humano: esses são os principais problemas que o pediatra e sanitarista carioca Daniel Becker vê na formação das crianças hoje. Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (FIOCRUZ) e docente de Saúde Coletiva da UFRJ, o médico fala à Cult sobre medicalização precoce, os acertos e erros na criação dos filhos e o que envolve uma boa parentalidade.
Como você percebe a presença da tecnologia na infância?
Nós convivemos com a tecnologia o tempo todo, ela está onipresente em nossas vidas, é necessária, facilita muita coisa, mas o conteúdo das redes sociais, os vídeos curtos, está se tornando muito nocivo para todos, especialmente para as crianças e adolescentes. O trabalho do algoritmo, que visa em princípio trazer lucro para as empresas, está gerando uma radicalização de comportamentos, uma dependência profunda. É uma Inteligência Artificial primária, em comparação com a Inteligência Artificial Generativa do ChatGPT e similares, que faz mais uma curadoria de conteúdos, mas está provocando estragos impressionantes na saúde mental de crianças e adolescentes. Ela gera dependência, transtornos psiquiátricos, retardo de desenvolvimento, perda de criatividade, de habilidades sociais, isolamento, sedentarismo, problemas posturais, problemas cardiovasculares e ósseos por causa do sedentarismo e da postura que temos diante da tela. A miopia se transformou em uma epidemia, crianças e adolescentes estão emparedados em casa, na escola e, quando têm tempo livre, ficam no celular, então estão praticamente o tempo todo emparedados, o que faz muito mal aos olhos, pois a visão de perto faz mal, o olho precisa olhar para longe e precisa da luz do dia, externa, ao ar livre.
Além dos problemas relacionados a golpes, predadores sexuais, acesso à pornografia, que está começando muito cedo, pois bastam dois cliques para acessar um site pornográfico livremente, sem restrição à idade da pessoa. Isso está deturpando completamente a sexualidade das crianças e adolescentes, erotizando-as precocemente e de uma forma doentia, dissociada da intimidade, do afeto e da realidade de uma vida sexual. E também há os riscos de pedofilia, de perda de privacidade, de exposição de si próprio e de outras pessoas, de dados da família, de exposição ao ódio, à intolerância, ao racismo, que se disseminou muito nas redes, dominadas hoje pela extrema direita. E a perda do sono, algo gravíssimo, pois as crianças acordam de madrugada e pegam o celular na cabeceira da cama porque notificações tocam de madrugada.
Além de as famílias estarem perdendo o contato, não se olharem mais nos olhos, não contarem mais histórias. A educação vai se perdendo, pois está todo mundo viciado em celular, e a leitura está indo para o espaço também. Ninguém consegue ler um texto mais longo, pois está acostumado com o videozinho de 15 segundos. A atenção, que é algo tão importante, está se dissipando, então não se consegue prestar mais atenção em uma aula, em um professor, em um texto ou mesmo em uma conversa. Isso não é gerado pela tecnologia em si, mas pela dependência do celular que, por sua vez, é gerada pelas empresas através de mecanismos muito inteligentes, nos quais se investem bilhões de dólares para aperfeiçoar o algoritmo e aumentar nossa dependência, fazendo-nos permanecer nessas redes em repouso, em entrega total. Realmente me preocupa uma geração que está perdendo em desenvolvimento cerebral, saúde física, mental, emocional e social, perdendo em capacidade de aprendizado, fatos cada vez mais demonstrados em trabalhos científicos.
Quais as diferenças entre a maternidade e a parentalidade, de hoje e das gerações passadas?
Antigamente nós tínhamos uma transmissão de saber intuitivo de avó para mãe, para filha, para neta, especialmente entre as mulheres, que eram responsáveis pelo cuidado com os filhos. O pai tinha um papel de autoridade, muitas vezes violenta. Mas a conquista do aprender maternar, de saber cuidar de crianças, era meio automática e vinha pela intuição, por essa transmissão em segundo plano que acontecia quando uma mulher de 20 anos ajudava a irmã a cuidar do filho e a avó a cuidar do filho temporão, o irmãozinho mais novo, e quando ela tinha um filho já sabia as principais regras do “cuidado”, do qual os pais ficavam ausentes nesse papel de autoridade, muitas vezes violenta.
Isso tinha aspectos positivos, pois ninguém precisava estudar como cuidar de filhos e o cuidado era bastante apropriado em certos sentidos, e negativos, porque se cometiam muitos erros, que eram naturalizados e desconhecidos. Especialmente erros relacionados ao uso de violência contra a criança, violência física, verbal, de todos os tipos. Como o castigo que não ensina nada, a falta de diálogo, de empatia, a não participação da criança em conversas e decisões, a visão da criança como um ser completamente submisso e subjugado, e muitas vezes agredido e tratado com violência.
Hoje em dia, você tem o oposto. Você abre o Google e pergunta como ser uma boa mãe, um bom pai, e vão vir seis bilhões de páginas. E as exigências são múltiplas, ninguém sabe o que fazer, está todo mundo perdido. As referências familiares se fragmentaram completamente, as referências do Estado, da moral, da Igreja, tudo isso se dissolveu, e o Google é nossa grande referência, assim como, especialmente, as redes sociais. Nas redes, você tem um cardápio de influenciadores muito amplo, alguns com ótima qualidade, alguns com qualidade duvidosa, especialmente vendedores de cursos, de e-books, de informações, gente que está querendo ganhar dinheiro à custa de um marketing que, muitas vezes, é mentiroso.
A desorientação dos pais é agravada pelo fato de não terem mais tempo de convívio, que é a chave de uma boa parentalidade. Se você convive com seu filho, conhece ele, adquire intimidade com ele, você consegue educar muito melhor e dosar como aplicar limite e disciplina de forma respeitosa, amorosa e empática, sem cair nem na permissividade nem na violência. O autoritarismo é totalmente desnecessário. A autoridade pode ser sempre serena e colocar limites claros, orientando e conversando, jamais usando violência, o pior erro que podemos cometer com a criança.
Em uma metrópole, não vivemos a natureza tão diretamente. Como isso afeta a formação de uma criança?
A natureza é um território essencial para o ser humano e, mais ainda, para a criança, que está mais próxima da natureza do que da cultura – no sentido da nossa natureza, do nosso DNA, da forma como nós fomos criados e evoluímos. A criança é um ser mais selvagem, ainda não está aculturada, então precisa da natureza, o corpo dela precisa da natureza, se encanta com ela, e sua perda é algo que custa muito para ela. A natureza é um lugar onde ela vai aprender mais, vai despertar curiosidade, o senso de descoberta, a criatividade, a capacidade de avaliar pequenos riscos, de viver de forma mais aventurosa, de solucionar problemas que se planteiam para ela, pois a natureza oferece dificuldades, barreiras, dúvidas e perguntas pela heterogeneidade e irregularidade. A criança vai melhorar a memória, reduzir o peso, melhorar a forma cardiovascular, a imunidade, a atenção, a capacidade de aprendizado, reduzir as alergias, a hiperatividade.
E ela traz também benefícios maiores para as crianças por afastarem-nas das telas, do narcisismo, do consumismo, dessa futilidade, dessa hiperadesão a marcas, essa valorização da beleza e do aspecto físico a que a publicidade e as redes sociais dão tanta ênfase. Ao contrário, a natureza a coloca em contato com uma realidade mais transcendente, um mundo de beleza e harmonia que traz para a criança, como para qualquer pessoa, a sensação de maravilhamento, de gratidão por contemplar e presenciar aquilo, além de estar brincando, correndo, pulando.
Quais os excessos praticados, e as faltas, comuns nas duas primeiras fases da infância?
Justamente a falta de convívio com os pais, do olho no olho, do afeto, dos limites bem colocados de forma respeitosa, amorosa e empática. A falta de comida natural, portanto o excesso dos ultraprocessados, é outro problema gravíssimo na infância. As pessoas estão apelando para os produtos industrializados e eles são extremamente tóxicos para a criança, pois são compostos de muito açúcar, muito sal, muita gordura e aditivos químicos extremamente nocivos para o microbioma, viciando o paladar das crianças, fazendo justamente com que elas se tornem cada vez mais seletivas, em um círculo vicioso: quanto mais a criança come porcaria industrializada e ultraprocessada, menos ela come comida natural.
Entre os pobres isso é gravíssimo, pois os ultraprocessados têm lobby, têm propaganda e baixo preço, pode-se conservá-los facilmente, então estão mais disponíveis para o pobre. Está havendo uma epidemia de obesidade e desnutrição associadas, pois o ultraprocessado engorda e não alimenta. A obesidade infantil aumentou 70% em dez anos no Brasil e, associada nos últimos anos à desnutrição, você não consegue manter o mínimo de micronutrientes, de proteínas, de vitaminas, que são absolutamente necessárias, e o microbioma fica cada vez mais prejudicado, o que gera desestímulo, desânimo, mau humor, irritabilidade, incapacidade de aprender, pois existe um eixo entre o cérebro e o intestino que é muito importante também.
Assim como a natureza é o território essencial da criança, o brincar é sua grande linguagem, pela qual ela se conhece, compreende a si e ao mundo e se expressa nele, então são funções vitais do brincar. A criança é brincar, a vida dela é brincar, é assim que ela vive, evolui e adquire habilidades para a vida adulta.
Mas cada vez tem menos brincar nas casas, pois as crianças ficam confinadas nas telas, e nas ruas, percebidas como “perigosas”. Os pais preferem mandar a criança para uma aulinha de inglês, de kumon, de reforço escolar do que para brincar na pracinha. E brincar na escola está cada vez mais reduzido: a educação física acontece apenas em um dia na semana, os recreios são cada vez mais curtos, as crianças ficam com o celular no recreio, o que é gravíssimo. A escola precisa de celular zero no ensino fundamental. Não pode ter celular na aula nem no recreio. Estou fazendo uma campanha nesse sentido, pois a criança precisa aprender na aula e brincar no recreio.
Quais as repercussões na infância de um mundo politicamente polarizado e em constante tensão?
Eu não vejo nenhum problema em transmitir questões políticas para as crianças. O que acontece é que tais questões estão se polarizando excessivamente, e a política virou uma arena de ódio, aí sim é um problema. Temos que evitar que as crianças tenham contato com ódio político, especialmente com o ódio da extrema direita, com as mentiras, as fake news, as ideologias extremistas. Há adolescentes ficando racistas, misóginos, fazendo esse papelão em eventos ridículos e nocivos. A aporofobia, a fobia do pobre, a injustiça social, tudo isso tem que ser pauta de conversa com as crianças mais velhas. É preciso mostrar a elas o problema da intolerância, do ódio, da falta de debate. Também é importante explicar o papel do algoritmo e da rede social no sentido de nos colocar em campos cada vez mais opostos, que não dialogam e que são extremamente violentos na extrema direita.
Como é possível construir a igualdade de gênero com as crianças pequenas e vivenciá-la com elas? De forma mais ampla, como as crianças participam da elaboração da diversidade na sociedade?
O mais importante é educar as crianças para a diversidade, oferecer brinquedos antes considerados femininos, relacionados ao cuidar, para meninos, mostrar que é perfeitamente possível expressar suas emoções e chorar, deixar brincar com boneca, experimentar vestidos e brincar com isso, o que não vai afetar o gênero. Brincar e entender que meninos e meninas são iguais, mostrando que as meninas podem tudo o que elas quiserem, que não devem ter barreiras, que podem ser tão fortes, atléticas e inteligentes como os meninos. Isso é uma educação para todos. Em relação ao racismo, a família pode procurar ter representatividade de pessoas negras no seu círculo social, na sua escola, assim como fazer amizade com famílias de origens étnicas diferentes para que a criança possa conviver no seu dia a dia com pessoas diferentes dela e entender profundamente como nós somos todos iguais. E para que a criança branca, de classe média, entenda seus privilégios, entenda a importância de a gente oferecer equidade, mais oportunidades a quem tem menos em tudo na sociedade, aos injustiçados.
Como você pensa o mal-estar na sociedade para além dos hiperdiagnósticos e da medicalização precoce das crianças?
A medicalização é justamente uma consequência de todos esses fatores opressivos para a infância: a ausência dos pais, de convívio, o celular, a comida ultraprocessada, a adultização, as escolas conteudistas, a falta de brincar, de natureza, o confinamento. Uma série de fatores tão graves que a criança vai ficar sintomática, vai ficar afetada por eles e adoecer.
Resolver isso com remédio é varrer para baixo do tapete tais fatores, uma espécie de ansiolítico social. Você impede que as pessoas vejam que o problema não é da criança, você a culpabiliza, indica um probleminha no cérebro dela, que é corrigido, então, com um remédio. Quem adora isso é a indústria farmacêutica, os médicos. Há uma disputa de poder nesse sentido. Muitas crianças, é claro, têm um grau de distúrbio e transtorno que as leva a tomarem remédio por um tempo para fazer suas terapias e ter uma vida boa. Mas é claro que está havendo um sobrediagnóstico e uma super medicalização da saúde mental e da educação das crianças. A escola pressiona muito as famílias por remédios, porque elas perturbam a sala de aula, porque a maioria não sabe lidar com a diversidade. Há um excesso massacrante de medicalização infantil, e isso é muito grave, porque cria mais um fator opressivo, já que esses remédios alteram a estrutura cerebral e estão normatizando crianças com comportamentos reativos à opressão, o que é muito saudável. Os problemas de comportamento muitas vezes são linguagens, são comunicações que as crianças estão fazendo e precisam ser ouvidas. Há pessoas que foram “crianças problemas” e deixaram legados incríveis para a humanidade. Se tivessem sido medicalizadas, provavelmente não teriam deixado legado algum.
A adolescência é um período difícil para quem vive e para quem cuida. Parece haver uma quebra de entendimento entre pais e adolescentes. O que fazer para uma boa convivência?
O diálogo com o adolescente começa na infância. Se você, durante a infância, não se conecta com seu filho, castiga, bate, grita, é óbvio que você não vai ter uma relação fácil quando ele virar adolescente. Quando um adolescente comete um erro ou faz uma besteira, ele tem que ter confiança para procurar você e não esconder nada. A conexão começa na infância.
Na adolescência, essa conexão é por via indireta. Precisamos entender que o adolescente está cumprindo uma tarefa fundamental: afastar-se do ninho materno e paterno e procurar a identidade dele também no núcleo de amigos, com os pares, do grupo no qual precisa ter pertencimento, comportar-se igual, vestir igual, fazer as mesmas coisas. Infelizmente, com as redes isso também está deixando de se realizar. Quando a gente convive com um adolescente, pode trazê-lo para perto e ter oportunidades bacanas de conversa, de fazer coisas juntos, ver um filme, ir ao cinema, ir a um jogo, a um restaurante, exposição, museu, para fazer um programa em família. Essas são as oportunidades de o adolescente se integrar, aproximar-se dos pais e conversar. E também aproveitar a cultura da mídia em casa, vendo jogos juntos, jogando coisas juntos, até vendo vídeos de besteira para desenvolver pensamento crítico.