Ignorante com poder e sem poder – um problema no âmbito da legalização do aborto

Ignorante com poder e sem poder – um problema no âmbito da legalização do aborto
Eduardo Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados

A frase de Eduardo Cunha “aborto e regulação da mídia só serão votados passando por cima do meu cadáver” pronunciada esta semana no clima truculento que caracteriza a má política brasileira atual (salvo exceções, nunca é demais dizer) provocou muitas críticas.

Regulação da mídia é assunto para outro texto. Mas a questão do aborto é urgente enquanto a truculência passa por cima de mulheres que morrem, vítimas da ilegalidade.

Militantes da questão do aborto voltaram a levantar argumentos em nome da legalização com a maior seriedade. Quem  defende a legalização do aborto sempre toma o cuidado de deixar claro que ninguém é a favor do aborto puro e simples. Que a questão do aborto é a do direito das mulheres à saúde e ao seu próprio corpo, bem como à sua escolha de vida. Quem fala em nome da legalização do aborto põe em cena a exigência de respeito própria ao desejo de democracia que ainda nos permite viver em sociedade.

Penso nisso bastante perplexa com o fato de que a ignorância prepotente e truculenta não se cansa de falar sobre o aborto. É de estarrecer o sucesso de grosserias que parlamentares vem dizendo há tempos. O sucesso que fazem entre eleitores igualmente grosseirões. Por que não se calam? Podemos nos perguntar, mas não podemos perguntar a eles. Seria uma grosseria do mesmo nível. E, pior: não seria escutada. Problema é que aqueles que falam contra a legalização não ouvem o que dizem aqueles que a defendem. Não ouvem as próprias mulheres enquanto legislam sobre elas.

E falam demais. E por que falam pensando que dizem verdades, não se calarão. Consideram a si mesmos, como qualquer personalidade autoritária, donos do outro a quem tomam por “ninguém”. São atualmente os donos do Brasil e agem como donos dos corpos e mentes das brasileiras que, de algum modo, eles levam à morte, no contexto do aborto ilegal. É o mesmo caso do que acontece com a ilegalidade das drogas. A ilegalidade mata. Ela é a garantia de que os abandonados pelo Estado não incomodarão nunca mais.

Ignorante com poder e sem poder

Enquanto mulheres morrem, a fala estúpida do deputado reverbera em mentes ignorantes que se regozijam com clichês. Quem ama os clichês (como Eichmann, Hitler e Eduardo Cunha) deve se pensar o mais inteligente dos homens como só os canalhas pensam acerca de si mesmos.

Certamente o papel de um parlamentar não é uma questão para quem se pronuncia dessa maneira. Certamente quem se pronuncia dessa maneira não foi ensinado a escutar. A palavra diálogo certamente não faz parte da gramática da agressividade que é o jogo de linguagem no qual parlamentares dessa linhagem alimentam seu espírito autoritário.

Penso nessas pessoas que, sendo vítimas de uma cultura irreflexiva em que a ignorância sempre foi mais elogiada que a escola, concordam com a estupidez de Eduardo Cunha.

Mas penso que há uma diferença entre os ignorantes. Entre aquele que vota e aquele que é eleito. Um é simples, sem poder; o outro é complexo, com poder.

Eduardo Cunha não é evidentemente um ignorante simples. Ele é um ignorante complexo porque tem poder. Hoje ele tem ainda mais poder como presidente da Câmara. O que se pode fazer para deter os efeitos da ignorância complexa que é a de quem tem poder? O que se pode fazer para evitar que a ignorância prepotente, essa ignorância que se constitui em comunidade, tome o poder?

Podemos partir de uma autorreflexão crítica, sempre é bom antes de votar. E é bom também na hora de defender verdades supostas. Seria bom que as mulheres tomassem mais espaço no poder. Continuo pensando que esse não é um assunto de quem não engravida.

Enquanto isso, a mentalidade ignorante quanto à questão do aborto tem vencido. Nós, mulheres, seguimos abortando.

As pessoas não sabem o que dizem quando falam contra o aborto

É bom divulgar argumentos relativos à saúde das mulheres, ao direito sobre o corpo, ao preconceito religioso e de classe que impera na mentalidade geral sobre o tema do aborto. Mas é bom também levantar o sentido dessa ignorância comum, pois as pessoas não sabem o que dizem quando essa é a questão. Na falta de expressão elas usam a frase feita, a ideia construída pela ignorância. É a falsa expressão o que está em cena quando se fala preconceituosamente  sobre aborto. As pessoas não falam o que realmente pensam, elas simplesmente repetem discursos a partir do que é transmitidos por igrejas e meios de comunicação de massa comprometidos com o poder na sua forma de opressão. Oprimir as mulheres não é novidade nenhuma. O ódio no discurso contra a legalização do aborto defende ocultamente a morte das mulheres pobres ou desamparadas legalmente no seu ato comum de abortar.

Lastimando

Por fim, gostaria de dizer que a frase grosseira e agressiva do mau deputado é um estímulo à ignorância da nação. Qualquer coisa que se diga de Eduardo Cunha não escapará ao lamento: seus projetos de lei fascistas, seus pronunciamentos vergonhosos. Em clima de piada politicamente incorreta (ando lendo muito Nelson Rodrigues que sempre ajuda em certas guerras) podemos dizer que sua frase é de lastimar, bem como que, na época de sua mãe, o aborto…

Mas falando bem seriamente, sinto muita vergonha de viver em um país com políticos desse tipo e de não poder deixar de escrever sobre um personagem como esse ignorante com poder.

* Sugiro um texto simples que apresenta argumentos e questões sobre o tema do aborto para qualquer tipo de leitor, porque é preciso acender as luzes contra o apagão ético e político atual no que concerne ao aborto:

http://catolicas.org.br/destaques/mulheres-cadaveres/

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