Humanidade miserável
Em seu primeiro romance, Dostoiévski trouxe à tona os sentimentos e infortúnios dos excluídos de São Petersburgo
Aurora Bernardini
Um mundo multiforme e contraditório, ao qual se referiu Igor Vólguin – estudioso da obra de Dostoiévski (1821-1881) – configurou-se em volta do escritor desde sua primeira infância. Doçura e crueldade, miséria e esbanjamento, fantasia e realidade, ordem rígida e evasão, soberba e submissão, avareza e dom de si são apenas algumas das características que haverão de marcar Gente Pobre (1844-1846), seu primeiro romance.
Fiódor era o segundo dos sete filhos (quatro homens e três mulheres) de Mikhaíl Andréievitch e Maria Fiódorovna Netcháiev. O pai, médico, iniciou sua formação cuidando dos feridos da campanha contra Napoleão em 1812, mas teve uma carreira medíocre. Vítima de um terrível complô dos servos que maltratava, morreu em sua propriedade rural localizada em Tula, cidade próxima a Moscou. A mãe, Maria Fiódorovna, era filha de um rico comerciante. Mulher sensata e generosa, abrandava o marido ciumento e protegia a prole de seus ataques.
Quando Fiódor nasceu, a família morava nas dependências do grande hospital público Mariinski, em Moscou, onde o pai trabalhava. A casa em que moravam era circundada por um jardim, separado do hospital por uma grade. Era para lá que o jovem Fiódor escapulia, misturando-se aos pacientes e deles ouvindo as histórias mais variadas. Os relatos o impressionavam a ponto – dizem alguns de seus biógrafos – de ter tido aos 9 anos o primeiro ataque de epilepsia, doença que nunca o abandonou e que descreveria, com instantes de êxtase, em Mýchkin, Smerdiákov e em outros protagonistas de seus futuros romances.
Infortúnios
Em 1834, Fiódor e o irmão mais velho, Mikhail, foram inscritos no internato Tchermak, de onde sairiam para ingressar na Escola de Engenharia do Gênio Militar de São Petersburgo. Aos sábados, voltavam para casa e, valendo-se dos momentos em que o pai descansava, devoravam os livros de seus autores prediletos (Walter Scott, Charles Dickens, George Sand, Victor Hugo) e recitavam poemas de Púchkin e Jukóvski para a mãe, já doente de tuberculose, que os ouvia encantada.
A partir de 1837, as desgraças se sucedem. Primeiro a morte de Púchkin, o ídolo, depois, a da mãe amada. Outro grave desgosto: o irmão e grande amigo Mikhail não é aceito na Escola de Engenharia por questões de saúde. Na escola, rigorosíssima, mas onde injustiças são cometidas em prol dos protegidos, Fiódor passa por dificuldades financeiras e mal consegue sobreviver, pois o pai – tomado por uma avareza incontrolável – não lhe envia o dinheiro imprescindível. Em junho de 1839, recebe o telegrama em que é informado da morte do genitor, que fora brutalmente assassinado pelos colonos mujiques. A comoção é tanta que lhe sobrevém outro acesso epilético.
O crime repercute em sua consciência de forma indelével. Fora das leis humanas, ele também é culpado, também desejara a morte do pai, dirá Freud em seu ensaio “Dostoiévski e o Parricídio”. Se as leis humanas erigem um “muro de pedra” em volta do indivíduo, os futuros protagonistas de seus livros haverão de transpô-lo, caindo em um território ora ilógico, ora alucinado, em que será dito aquilo que tem medo de revelar a si próprio.
A gênese do romance
No entanto, a vida continua. Fiódor traduz Balzac e Schiller, compõe dois dramas históricos, joga e despede-se do irmão Mikhail que, agora casado, vai morar em Revel. Quem lhe fará companhia durante certo tempo é o irmão André, que vai a São Petersburgo estudar arquitetura.
Passados alguns concursos, Dostoiévski entra nos quadros do serviço ativo do Gênio Militar. Em 1844, porém, em vista de uma transferência que haveria de levá-lo para longe de São Petersburgo, demite-se irrevogavelmente. É em meio às dificuldades financeiras e ao mar de dívidas em que se encontra mergulhado que começa a esboçar Gente Pobre, seu primeiro romance. Em março de 1845, escreve ao irmão em Revel: “Estou contente com meu romance. Já o estou passando a limpo. É uma obra sóbria e limpa, apesar de alguns defeitos”.
Dostoiévski mal podia imaginar o estrondoso aplauso com que a crítica progressista da “escola natural” russa – de tendência social, voltada para o tema dos desvalidos, com Belínski à frente – iria saudar o livro, publicado em 1846. Em forma epistolar, o romance traz duas digressões nas quais os dois heróis contam um ao outro sua vida modesta e atribulada. De um lado está o pobre escriba Makar Diévuchkin – que, como Akaki Akákevitch, de Gógol, só possui um uniforme remendado – e, de outro, seu secreto amor: a doce e terna Varvara Dobrosiólova, jovem que vive de costura, em uma casa ao lado.
O leitor há de ficar impressionado com os sentimentos insuspeitos e as “verdades elementares” que suscitam esses habitantes de uma São Petersburgo que, ao lado de belos palácios, avenidas fervilhantes e heróis retumbantes, como Don Carlos e Posa, abriga pardieiros de uma humanidade miserável composta de pequenos funcionários, usurários, prostitutas, estudantes e jovens ultrajadas. “Eles são vossos irmãos”, escreveria Belínski. “Em algum canto sombrio, o coração puro e nobre de um conselheiro dedicado a seus chefes e, com ele, o de uma jovenzinha, ultrajada e triste” – conforme escreveu Dostoiévski – lhe apontava a vereda pela qual começaria o percurso de sua longa estrada.