História de uma amizade: duas vozes, uma narrativa
Montagem da tetralogia napolitana dirigida por Luigi De Angelis (Foto: Salvatore Pastore)
Uma mulher recebe a notícia do desaparecimento de sua amiga de infância. Este é o gatilho que a leva à escrita da história dessa longa e conflituosa amizade, uma narrativa que entrelaça a vida das personagens à história da Itália, mais especificamente à história de Nápoles, de meados de 1950 a meados de 2010. Com essa premissa, o romance A amiga genial, de Elena Ferrante, foi publicado em quatro volumes separados, entre 2011 e 2014. A tetralogia napolitana, como ficou conhecido, tornou-se rapidamente um best-seller internacional e foi indicado aos principais prêmios da área.
Mas, para além dos marcadores habituais do mercado editorial, o que torna a “Febre Ferrante” um fenômeno raro é o fato de que, no intervalo de poucos anos, a obra se infiltrou na cultura de nossa época, rompendo os confins do mundo literário. A amiga genial inspirou a série My brilliant friend, exibida pela HBO em 2018, e ao menos três montagens no teatro. Uma delas, a adaptação italiana Storia de un’Amicizia (História de uma amizade), acaba de vir ao Brasil.
Dirigida por Luigi De Angelis, com autorização de Ferrante, a peça é um condensado poético da obra e se detém sobre a relação de intersubjetividade radical que se dá entre a narradora, Elena Greco (interpretada por Chiara Lagani), e a amiga desaparecida, Rafaella Cerullo, a quem chama de Lila (Fiorenza Menni).
Idealizada pela companhia Fanny & Alexander, a montagem é composta por três atos: “As duas bonecas”, “O novo sobrenome” e “A menina perdida”. Em São Paulo, foi encenada em uma apresentação única, dividida em dois dias consecutivos, somando quase três horas de duração.
Na última quarta-feira (dia 02/10), no Sesc Pompeia, os espectadores assistiram ao primeiro ato, que corresponde à infância das personagens. Na quinta-feira (dia 03/10), foram encenados o segundo e o terceiro atos, concentrando as demais fases da vida de Elena e Lila.
O título História de uma amizade coincide com o título da narrativa publicada por Elena Greco na tetralogia napolitana, que, por sua vez, condensaria a história que lemos em A amiga genial. Os eventos e as personagens que se avolumam ao longo da narrativa, em uma profusão de pequenas histórias, estão sempre dialogando com as mesmas tensões que constituem o seu eixo central. Na obra de Ferrante, o pequeno contém o grande tanto quanto o grande contém o pequeno.
Na peça, estamos a sós com Elena e Lila. No primeiro ato, em um palco escuro, os espectadores são transportados para o clima claustrofóbico do bairro de infância e para o temido porão em que as bonecas das personagens são jogadas no início da história. No segundo e no terceiro ato, entram em cena novos figurinos e algumas projeções no telão. Algo faz pensar no cineasta e dramaturgo Ingmar Bergman e em seu filme Persona (1966), que também mergulha em uma obscura relação entre duas mulheres.
O foco da adaptação se desdobra em dois eixos: 1) a transposição dos afetos narrados, sobretudo do medo e do horror vivenciados pelas personagens em diferentes momentos de suas vidas, para uma linguagem corporal que complementa o texto, como uma espécie de coreografia da angústia; 2) e a representação da intersubjetividade, que molda o texto literário, e poucas vezes é destacada com o relevo estrutural que encontramos na peça, um de seus maiores acertos.
No palco, a voz de Lila muitas vezes se sobrepõe à voz de Elena. Ambas encenam juntas o texto escrito pela narradora, reforçando a influência que a amiga teria exercido sobre ela. Nos livros, só temos acesso à Lila a partir do que a narradora incorpora a seu relato. Não há qualquer vestígio direto, nenhum excerto dos escritos que tanto impressionaram Elena ao longo da vida. Já na peça, Lila está fisicamente presente, ainda que como figura fantasmagórica a depender da interpretação de quem assiste.
Enquanto a atuação de Lagani é contida e estruturada, mesmo nas cenas mais inquietantes, a atuação de Menni é ruidosa e exaustiva: Lila está sempre ofegante, dá gargalhadas sombrias, soa sempre como uma figura atormentada. Nos livros e na série, Lila parece oscilar entre momentos de excesso e momentos de esfinge. Se nos palcos, o exagero funciona bem, ainda assim é a atuação de Lagani que surpreende: em sua contenção, expressa belamente a condição-limite de Elena, constantemente oprimida entre dois mundos opostos.
Sócia da companhia ao lado do diretor da peça, Lagani também assina a dramaturgia. Formada em letras clássicas pela Universidade de Bolonha, sua adaptação é uma alternância entre a costura própria de trechos retirados da obra de Ferrante (o prólogo e o epílogo, por exemplo, são lidos na íntegra) e o acréscimo de novos trechos, em especial quando as bonecas, duplos das personagens, entram em cena, com cenas que mimetizam brincadeiras e conversas infantis. Esses trechos foram livremente inspirados em obras de Lyman Frank Baum, Toti Scialoja e Wislawa Szymborska.
Para os leitores que apreciam o realismo e o melodrama novelesco da tetralogia de Ferrante, a montagem talvez pareça muito distante do que encontraram nas páginas. Mas, para aqueles que estiverem abertos ao diálogo, é uma adaptação que pode iluminar hipóteses de interpretação mais complexas, enriquecendo a leitura.
As sessões de Storia de un’Amicizia fizeram parte da Scena, Semana da Cena Italiana Contemporânea em São Paulo, evento realizado pelo Sesc em conjunto com o Instituto Italiano di Cultura, entre 2 e 6 de outubro de 2019. A peça foi encenada em italiano, com legendas e tradução simultânea para o português, preservando sempre o eco de duas vozes em uma só narrativa.
FABIANE SECCHES é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo