História de raiz
Antonio Arnoni Prado
Em Escritos Coligidos, de Sérgio Buarque de Holanda, Marcos Costa reúne em dois volumes artigos e estudos dispersos de valor inestimável para o significado da obra do grande historiador brasileiro.
Neles, o leitor encontra uma espécie de radiografia do itinerário de Sérgio Buarque frente aos temas com que veio compondo a nossa nova história, enriquecida por ele de uma metodologia verdadeiramente transformadora.
Ou seja, um amplo espectro da pesquisa que se estende pelos trabalhos escritos entre 1920 e 1970, em que o organizador recupera e atualiza ensaios, artigos e estudos que foram sendo redigidos enquanto Sérgio trabalhava “em suas obras-primas”, valendo-se – como Costa assinala – dos momentos de pausa “em suas reflexões mais sistemáticas e introspectivas” acerca dos acontecimentos do tempo presente.
Para os interessados na obra de Sérgio Buarque, são pelo menos três as vantagens que o livro acrescenta à magnitude de sua presença no panorama da nossa cultura.
A primeira é a que nos permite acompanhar as metamorfoses do trabalho de autor, cujo método se articula com a dinâmica dos acontecimentos e antecipa a própria metodologia renovadora da terceira geração dos Annales, ao abrir-se “para a valorização da história cultural em detrimento da história política que se fazia até então”.
Com isso, o leitor pode refazer as etapas e avaliar o avanço gradual dos conceitos que se ampliam no imaginário hermenêutico de Sérgio Buarque. Testemunha, por exemplo, como seus esboços se convertem em hipóteses, como as hipóteses se legitimam em contextos iluminadores, como alguns retratos se ampliam em panoramas que harmonizam o conjunto das relações construídas, sustentadas por densa riqueza de fontes inéditas e farta documentação de pesquisa.
É por esse lado, por exemplo, que vemos nascer “Corpo e Alma do Brasil”, um texto repleto dos embriões do clássico ensaio Raízes do Brasil. Do mesmo modo, podemos acompanhar o surgimento de Caminhos e Fronteiras, por meio das reflexões que irradiam de alguns estudos expressivos contidos nos dois artigos de “A Água e o Sertão”, assim como nas revelações do estudo sobre “Fiação e Tecelagem em São Paulo na Era Colonial”.
São textos que se integram não apenas à investigação minuciosa enfeixada em “Lanifícios Seiscentistas” como também nas três seções em que se desdobra o estudo “Redes e Redeiras de São Paulo”, compostos em fins do decênio de 1940.
Mas não é só. Um segundo ganho é que o universo desvendado por Costa nos permite ainda compulsar o que ele chamou de “as primeiras levas de textos historiográficos” produzidos por Sérgio Buarque naquele momento em que, de volta ao Brasil, se definia em seu espírito a guinada “do crítico literário para o historiador”.
É quando, ao mesmo tempo em que surgem os primeiros lineamentos de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque envereda pela contramão da historiografia convencional, para deter-se nos aspectos microscópicos da dinâmica social – numa direção inteiramente oposta à da tendência predominante daqueles que, inspirados no marxismo, apenas “se interessavam pelas massas, pela superestrutura da sociedade, pela política etc.”.
Aqui, do mesmo modo que o jovem crítico que retornava da Europa decide interrogar a nossa produção literária, tomando a literatura e a arte como instâncias capazes de discernir com clareza os valores subjacentes àquele quadro de “inclusão e confusão” que reinava na vida brasileira, percebemos que o objetivo maior do historiador que surge é o de deslindar não apenas os protocolos estritamente formais da nossa história.
Quer, sobretudo, a apreensão da realidade por meio dos substratos assimétricos que a configuravam, para nos revelar que – muito ao contrário do que pressupunha a velha história – nem sempre os padrões ordinariamente aceitos deviam ser aplicados com a mesma eficiência interpretativa.
Quer dizer: a interpretação, como a própria obra historiográfica, só terá ?eficiência para Sérgio Buarque quando reagir à imutabilidade da expressão passiva para, de algum modo, atender ao próprio ritmo da existência do historiador, mais próximo da notação cotidiana.
O objetivo, aqui, é o de relativizar o quanto possível o embate entre a supremacia da tradição – tão decantada no passado – e a dimensão concreta da vida material, com vistas a compreender a força irrevelada das formas naturais em si mesmas, de um ângulo inteiramente desligado dos artifícios concebidos pelo senso do passado.
Mas há ainda uma terceira vantagem: a de nos mostrar como se fixa, na historiografia de Sérgio Buarque, a eliminação do risco de fazer do intérprete “um monstro de abstrações armado de fórmulas defuntas ou ressequidas”, cujo maior equívoco estará na insistência com que se habilita a aplicá-las para justificar a “pouca representatividade” do universo em que se move.
Ou seja, fugindo sempre ao “intelec-?tualismo dos quadros fixos e imutáveis” dos que, em nome das origens europeias, teimavam em substituir a nossa realidade pela verdade dos conceitos que a paralisavam numa continuidade arbitrária, Sérgio Buarque prefere integrá-los a um novo contexto de mutabilidade e pesquisa.
São demonstrações disso alguns textos seminais que estes volumes enfeixam, com destaque para “O Problema das Culturas”, “Tradicionalistas e Iconoclastas” e “Mentalidade Capitalista e Personalismo”, no primeiro tomo; e “Introdução à Democracia”, “O Senso do Passado” e “Sobre uma Doença Infantil da Historiografia”, no segundo.
Antonio Arnoni Prado é professor de teoria literária na Unicamp e autor de Itinerário de uma Falsa Vanguarda (Editora 34)
(2) Comentários
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O BRASIL MODERNO DE SÉRGIO BUARQUE – Sérgio Buarque de Holanda foi de uma geração que viveu a redescoberta do Brasil, sua identidade. Em seu livro “Cobra de vidro” [São Paulo: Martins, 1944 (Mosaico, 5)], há artigos com discurso bem atual, como “Negros e brancos”. Mesmo suas análises literárias têm um sabor sociológico, como no artigo “Romantismo”. Seus estudos histórico-culturais mostraram um novo caminho para interpretar o Brasil, para uma nova consciência nacional, contribuindo para o estudo do nosso passado, chegando ao seu “homem cordial” [Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936 (Coleção Documentos Brasileiros, 1)], observando a passagem do Brasil rural para o urbano. Foi um marco, uma nova forma de ver e sentir esse Brasil novo, revisando nossa cultura, o modo de ver (o estilo europeu de ser até então). O pensamento moderno de um país então em formação (após a Revolução de 30), longe do pensamento autoritário do Estado Novo, deve-se muito a Sérgio Buarque.
A genialidade de Sérgio Buarque de Holanda – trazendo a lume uma valiosa produção intelectual multifacetada por várias áreas do conhecimento – eleva a cultura brasileira nos mesmos patamares que alcançam o mais notórios escritos estrangeiros representados por Paul Valery, Octavio Paz, Umberto Eco e outras tantas mentes brilhantes.
Sílvio Medeiros