Heidegger: ser, tempo e finitude
Edição do mêsPara Heidegger, o tempo é a instância com base na qual compreendemos as coisas e a nós mesmos (Foto: Reprodução)
Talvez Martin Heidegger (1889-1976) seja o filósofo cujas reflexões sobre o tempo mais se afastem daquelas com as quais estamos habituados. Para ele, o tempo originário não é aquele da natureza ou do mundo, no qual os acontecimentos ocorrem; nem o tempo do relógio, tomado como uma sucessão de instantes, do qual deriva o tempo objetivo da ciência, homogêneo e mensurável, e muito menos o tempo da metafísica e da teologia, pensado com base no infinito ou na eternidade. A temporalidade também não é subjetiva, como sustentam algumas interpretações filosóficas, de Kant a Bergson.
Entretanto, as diversas concepções do tempo mostram que é com base nele que conduzimos nossa existência prática no mundo e nosso conhecimento sobre as coisas. Observamos o ciclo dos astros e da natureza e construímos relógios para nos orientarmos nas tarefas cotidianas e no encontro com os outros. Na filosofia, na teologia e nas ciências, o tempo é índice para a delimitação e a separação das diversas regiões do ser. Já em Platão, as ideias são as essências eternas das coisas, em contraposição aos entes sensíveis, que passam com o tempo. Na física e na história, a medição do tempo é fundamental. Na matemática e na teologia, o tempo é o que delimita o objeto de conhecimento, seja como um objeto atemporal na matemática, seja como um objeto supratemporal ou eterno na teologia.
Para Heidegger, o tempo é a instância com base na qual compreendemos as coisas e a nós mesmos. Não seria por acaso que as investigações de Aristóteles e Agostinho sobre o tempo, consideradas por Heidegger como determinantes na história da filosofia, relacionam-no à alma humana: quando falamos do tempo, falamos de nós mesmos. Portanto, se existe um tempo originário, do qual derivam as demais formas de conceber o tempo e as diversas interpretações acerca do mundo e de nós mesmos, ele deve ser conquistado mediante uma análise do existir humano. O sentido de nosso ser é determinado pelo modo como nos projetamos no tempo.
Não é por acaso que Ser e Tempo (1927), a obra pela qual Heidegger é mais conhecido, procura pensar o tempo como horizonte para responder à pergunta sobre o sentido do ser e da existência humana.
Ser e tempo
Para compreendermos a questão do ser e sua relação com o tempo é necessário lembrar, ainda que brevemente, a distinção que Heidegger faz entre ser e ente. A palavra “ente” refere-se ao particípio presente do verbo ser, designando tudo aquilo que “é”. Entes são as coisas que encontramos no mundo, sobre as quais pensamos, nas quais cremos ou das quais duvidamos. Entes são os homens, as árvores, as pedras, as ideias, os objetos da matemática, Deus. O ser não é um ente, e sim o modo como os entes nos são dados; ele é aquilo que permite que os entes possam ser pensados e que possamos falar sobre eles. O ser é o sentido subjacente que orienta todo o nosso comportamento para com os entes. Assim, para Heidegger, a pergunta primeira do pensamento ocidental, “por que existem os entes?”, encobre uma pergunta mais fundamental que fora feita e esquecida: “Que significa ser?”.
Em Ser e Tempo, a possibilidade da retomada dessa pergunta repousa sobre o pressuposto de que nós, seres humanos, já sempre nos movemos em uma compreensão do ser, embora não a possamos explicar racionalmente. Logo, antes de buscar esclarecer o sentido do ser, é necessário primeiramente analisar a estrutura do ente que compreende o ser, ou seja, o ente que nós somos, denominado por Heidegger de ser-aí (Dasein). E, visto que toda compreensão do ser envolve uma interpretação do tempo, a essência temporal do existir humano, denominada de temporalidade, é o horizonte para a resposta à pergunta do sentido do ser.
A desconstrução das ontologias da presença
Sabemos que muitas das interpretações do tempo na história da filosofia, de Aristóteles a Bergson, remetem-no, de alguma forma, ao existir humano. Devemos perguntar, então, por que elas não são suficientes para pensar a temporalidade. Para Heidegger, o problema reside na interpretação do ser, dominante no pensamento ocidental, segundo a qual os entes são vistos como possuindo uma essência fixa e acabada, a qual pode ser apreendida integralmente pelo pensamento. Os entes são vistos como subsistentes, como puras presenças que podem ser dadas e isoladas na intuição e pensadas como suporte de propriedades e objeto de predicação. Seria essa “ontologia da presença e da subsistência”, a qual estaria na base das noções ocidentais de substância e de sujeito, que impediria uma análise mais adequada do existir humano e, consequentemente, da temporalidade.
Assim, nas diversas interpretações da existência humana no pensamento ocidental – seja como “animal racional”, como “ente criado” ou como “sujeito” –, o ser humano é visto como apenas mais um subsistente que se distingue dos outros por possuir a linguagem, a alma, a razão. Desse modo, a retomada autêntica da pergunta pelo ser exigiria uma redefinição da essência humana. Daí Heidegger utilizar o termo ser-aí ao mesmo tempo como indicativo para designar o existir humano e como operador de desconstrução das ontologias da presença.
Ser-aí e ser-no-mundo
Para Heidegger, o ser-aí é o ente cujo modo de ser é a existência. Existir significa habitar um âmbito no qual os entes se tornam acessíveis segundo um determinado modo de ser. Essa região na qual o ser-aí é projetado, tendo acesso aos entes em seu ser, é denominada mundo. Existir significa estar lançado em um mundo, o que não significa ser um sujeito que, saindo de si, é projetado em direção a um âmbito exterior a ele. O ser-aí não está no mundo como um subsistente que se encontra dentro de outro, como a água está no copo. Mundo não é um lugar no qual as coisas se encontram, mas antes uma totalidade de significação na qual elas adquirem sentido. Mundo é a abertura que doa possibilidades de ser.
Como projeto de mundo, o ser-aí não é substância ou sujeito a quem possam ser atribuídas propriedades que o definam, e sim um poder-ser que nunca se completa. O ser-aí é sempre uma possibilidade de ser si mesmo, estando sempre a caminho de novas possibilidades. Ao estar lançado no mundo, o ser-aí já se encontra, desde o nascimento, projetado sobre interpretações do ser previamente dadas, as quais ele não escolheu e que lhe foram transmitidas pela tradição à qual pertence.
Esse sentido herdado do ser prefigura possibilidades de existência para o ser-aí, fazendo com que se compreenda com base nos afazeres e no palavrório do dia a dia. O ser-aí possui a tendência de fugir de si mesmo e de sua incompletude, refugiando-se na impessoalidade do cotidiano na qual se sente seguro. Esse modo de ser, pelo qual o ser-aí foge de si mesmo, caracteriza o existir impróprio. O ser-aí não pode simplesmente livrar-se das possibilidades de existência que lhe foram transmitidas, porque elas constituem seu próprio ser; cabe a ele apenas apropriar-se ou não daquilo que ele já é.
A possibilidade de uma apropriação autêntica da existência depende do desvelamento de um horizonte que possibilite a compreensão da totalidade do ser-aí, livrando-o do domínio da impessoalidade cotidiana e permitindo a apropriação autêntica das possibilidades de ser na qual já se encontra lançado. Mas como pensar a totalidade de um ente que é puro poder-ser, que está sempre a caminho de novas possibilidades sem nunca possuir a posse total de si mesmo? A noção-limite de “ser-para-morte” será o indicativo que Heidegger utilizará para pensar uma possível apropriação da totalidade da existência e para a compreensão do tempo como fundamento do ser-no-mundo.
Ser-para-morte, temporalidade e singularização
Mas, o que é a morte? Compreendê-la como um evento futuro seria passar ao largo da noção de temporalidade em Heidegger e ficar preso ao entendimento vulgar, impróprio, do tempo. As teorias tradicionais do tempo, de Aristóteles a Bergson, estariam presas à ontologia da presença, concebendo o tempo como algo subsistente dado na intuição, seja como uma sucessão de instantes, seja como duração em uma consciência. A temporalidade é vista, pelo entendimento vulgar, como uma série de “agoras”: o presente é o agora; o passado, o agora-não-mais; e o futuro, o ainda-não-agora.
Para Heidegger, o tempo
originário não é sucessivo,
e sim “extático-horizontal”.
Extático porque projeta o
ser-aí para além de si em
direção ao mundo.
Horizontal porque delineia horizontes para possíveis compreensões do ser, modulando possibilidades de significação. A temporalidade não projeta o ser-aí como um sujeito que “sai de si” em direção ao mundo. Ela já é “em si mesma fora de si”, brotando a partir de si mesma sem um fundamento que a sustente. É por isso que Heidegger a denomina de nihil originarium: “o nada originário” no qual se dá o sentido.
Assim, a existência própria deve realizar-se em um projeto temporal que permita ao ser-aí compreender-se em sua finitude como um ente que, suspenso no nada, está entregue unicamente a si mesmo para ser. Isso torna-se possível mediante aquilo que Heidegger denomina de antecipação da morte, o que não implica o suicídio, visto que, uma vez morto, o ser-aí já não é. A morte é a possibilidade mais extrema e certa e, ao mesmo tempo, indeterminada e irrealizável; ela é a possibilidade da total impossibilidade. Na antecipação da morte, o ser-aí se compreende como puro poder-ser vazado de negatividade, cuja incompletude só acaba junto com a própria existência. A morte é também a possibilidade mais própria e intransferível, ou seja, a morte é sempre a minha morte, assim como o ser-aí é sempre meu ser-aí. A antecipação da morte permite a verdadeira singularização, na qual o ser-aí se destaca do domínio da impessoalidade e conquista sua individualidade.
A antecipação da morte revela o tempo originário como extaticamente projetado para o futuro. Isso não significa o desprezo pelo passado e pelo presente. O futuro não é a realização de um agora que ainda não se tornou presente, ele não revela um “que” a ser efetivado em um momento determinado, mas antes um “como”, um modo pelo qual o ser-aí se encontra disposto no mundo. O futuro é o êxtase temporal mediante o qual o ser-aí retorna a si. Heidegger aproxima o substantivo alemão Zukunft (futuro) da expressão auf sich zukommen, “vir ao encontro de si”. Ao ser lançado em direção ao futuro, o ser-aí retorna de modo próprio àquilo que ele já era, a uma possibilidade de ser na qual já se encontrava lançado, podendo apropriar-se de sua tradição. Só pode apropriar-se de si e de sua história um ente cujo porvir determina seu passado, nas palavras de Heidegger: O “torna-te o que és” só é possível se sou o que me torno.
Em Heidegger, a retomada ou repetição da pergunta pelo ser só é possível porque a filosofia finca suas raízes no solo temporal da existência humana, o que faz com que sempre se projete sobre novas possibilidades, impedindo-a de resumir-se em um sistema ou orientar-se por um telos, por um fim qualquer. Não seria exagerado dizer que, em Heidegger, a finitude humana encerra uma infinitude de possibilidades.
Alexandre Ferreira é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas com doutorado sanduíche de dois anos na Universidade de Freiburg (Alemanha). Professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)