Grito metálico
Edição do mêsO poeta Donizete Galvão (Arte Andreia Freire/Divulgação)
A poesia de Donizete Galvão está de volta, num livro póstumo inédito: O antipássaro (Martelo Casa Editorial, 2018). Não espere, leitor, algum canto altissonante, ou um “poema-alado”. Prepare-se para versos espremidos nos vãos de uma cidade-artefato, natureza devorada pela técnica, na qual surgem cones, caçambas, e pássaros-gruas sobrevoam a paisagem. Até a poesia está em suspeição, incapaz que é de abrigar os homens “arrebenta-pedra”, “que vestem macacões/ cor de laranja/ e andam pela/ rua correndo/ atrás do caminhão”, os que “saem de casa/ pela madrugada/ nas carrocerias e trazem a pele lapeada”. “Onde estão?” – pergunta o poeta em “Invisíveis”. “Que poema habitam?”
O antipássaro é o sétimo título de poesia desse mineiro nascido em Borda da Mata, que fez a vida em São Paulo, até nos deixar numa madrugada quente de janeiro de 2014, com apenas 58 anos. Desde então, é aguardada a publicação do inédito que deixara inacabado em seu computador.
Editado pela Martelo, de Goiânia, o volume foi organizado por dois poetas amigos e conhecedores da obra: Tarso de Melo e Paulo Ferraz, que deram o ponto-final, decidindo a ordem de entrada dos poemas. Para rastrear e indexar as diferentes versões que haviam sido transportadas de um computador para outro desde 2002, a dupla contou com a ajuda do poeta Carlos Machado.
Numa troca de e-mails de julho de 2013, duas decisões acerca do novo livro eram anunciadas pelo autor: o título O antipássaro, referência direta a Orides Fontela, a “poeta-irmã”, como bem aponta o professor e crítico literário Ivan Marques, num artigo de 2017 sobre a proximidade da lírica de ambos no “antipoético mundo dos homens”; e o desejo de incorporar a imagem da escultura Prometheu I, da artista brasileira Maria Martins, que tanto o impressionara na exposição Metamorfoses, sob curadoria de Veronica Stigger. Trata-se de uma forma humana em bronze, com garras de cipós em lugar de mãos, que hão de mantê-la – se não acorrentada e com uma águia a lhe comer o fígado como o próprio Prometeu – eternamente enredada à natureza.
Assim também se sente o poeta: aguilhoado aos vínculos, subjugado à precariedade cotidiana e fincado ao chão, como no poema “Não sabe”: “O amor que não sabe morrer/ não pretende tocar o céu./ Quer ficar aqui mesmo – pedestre, incauto e reles./ Não ouve a ladainha dos mortos./ Nem quer a extrema-unção”. Até a memória, ave imaginária, surgirá da sua própria testa, em “Harpia”: “Veio e bebeu toda a água que guardara, e, quando não havia mais água, furou-me com o bico a veia do pescoço e o fígado”.
Se Prometeu deu asas a uns e garras a outros, o poeta fará o mesmo das suas criaturas, como em “Pássaros urbanos”: “as gruas/ têm/ as plumas/ mais/ vistosas/ da cidade” […] “muitos/ pedem pela extinção dessa espécie tão pouco afeita às gaiolas”. Ou em “Ode ao morcego”: “rato, pássaro falhado/ sangue ou flores, mãos que são asas, bueiros, forros, caibros, pontes”.
A cidade-artefato contempla a “Flora urbana”: três poemas em prosa, como “Os cones”: “[…] Alimentam-se de monóxido de carbono e outros poluentes. Cultivados por taxistas, guardadores de carros e pela companhia de trânsito.”; “As caçambas”: “[…] esporádicas, não têm data certa para florir”; “O guindaste”: “[…] em volta deles, costumam surgir prédios de mau gosto”.
Ainda que O antipássaro traga de volta a poesia límpida e substantiva de Donizete Galvão, há raiva maior no seu desencanto. Em “Anjo exterminador”, dedicado a Waly Salomão, o poeta-anjo é rebaixado à condição de enganador: “Não me venha/ com essa conversa/ de anjo da anunciação./ Você vai enfrentar/ um anjo exterminador/ Tateie na caverna e encontre na sombra esse predador ancestral com asas de galo-índio – pronto para golpear a presa”. “[…] São traidores/ anjos enganadores. Têm-lhe ódio quando dizem morrer de amores. Negam a si mesmos. Negam os amigos. Só tem as palavras como seus abrigos.”
O antipássaro dá seu grito metálico. É preciso ouvi-lo, de preferência lendo os poemas nas noites insones.
Texto originalmente publicado na Cult n. 241 (dezembro de 2018).