A grande feira das ideias prontas

A grande feira das ideias prontas
(Ilustração: CLDT Design)

 

Como governar na era da comunicação em redes sociais? Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado estadunidense, aponta nos capítulos finais de Ordem mundial (2014), que essa é uma das questões mais preocupantes deixadas em aberto pelas evoluções recentes no mundo contemporâneo. Maquiavélico no que a palavra implica de cálculo político amoral e de estudo desapaixonado do poder e de seus mecanismos, Kissinger sabe na teoria e na prática que o homem de Estado se vê confrontado a escolhas nem sempre imediatamente compreensíveis pela opinião pública. Quando essa opinião se fragmenta ao mesmo tempo que se torna onipresente, a exemplo do que ocorre nas redes sociais, como o político pode resistir aos veredictos coletivos, muitas vezes incoerentes ou simplórios, embora sempre veementemente pronunciados? Pode aquele que segura o timão da coisa pública desprezar essa bússola frenética e caprichosa da opinião nas redes em favor de seu próprio sentido de direção e de objetivo a longo prazo?

As preocupações de Kissinger têm motivos reais. O mundo hiperconectado em redes apresenta a tendência de tratar o político como entretenimento. A grande família dos populistas apalhaçados – no estilo de Bolsonaro, de Trump ou do italiano Matteo Salvini – explora essa ambiguidade ao máximo. Muitos deles se popularizaram na televisão sensacionalista dos anos 2000. Basta lembrar o reality show de Trump ou as participações de Bolsonaro em programas de auditório. Levaram às redes as mesmas estratégias da comunicação de choque e sem escrúpulos para falar como que diretamente a seus apoiadores. Salvini, por exemplo, ficou conhecido pelos shows de ódio contra imigrantes e minorias, transmitidos em tempo real pela internet. Líderes como eles manipulam dentro das margens que suas torcidas lhes permitem manipulá-las.

Ao mesmo tempo, o entretenimento se torna mais e mais político. Isso ocorre sob o olhar inquisitorial das mesmas redes que transformam homens de Estado em palhaços e palhaços em homens de Estado. Todos os atos e todas as falas de cantores, atrizes, dançarinas ou esportistas são examinados e elevados à categoria de declarações políticas, favoráveis ou contrárias às preocupações de determinados grupos: a homofobia, a gordofobia, o racismo, o petismo, o socialismo, o politicamente correto. O vocabulário da época é abundante em neologismos e empréstimos ao inglês para qualificar os novos delitos diante dos novos juízes informais. Uma dançarina ter ressaltado seus traços negros num videoclipe e depois aparecer com a pele branca numa premiação: afroconveniência ou variação normal de uma mulher color fluid? Um ator heterossexual posta símbolos LGBT: oportunismo pelo pink money ou apoio sincero e compungido às vítimas de homofobia? 

Mesmo o silêncio pode ser suspeito. Como pode uma cantora pop adolescente não declarar seu voto na eleição presidencial estadunidense?

Foi desse caldo de discurso nas redes sociais, em que a busca por justiça se mistura perigosamente com o impulso justiceiro, que emergiu a dita cultura do cancelamento. Há decerto algo de abusivo na aplicação indiscriminada do termo cultura a esse fenômeno – assim como à cultura do estupro, à cultura da vítima, à cultura woke. Uma cultura deveria ser o que nos permite agir de forma refletida. Talvez fosse mais preciso falar em avalanche de cancelamentos, para ressaltar o que pode haver de massivo e irracional nessa forma de punição capital na internet. 

Bem entendido, nem tudo é barbárie numa avalanche de cancelamentos. Eles podem representar uma possibilidade de regulação social, necessária para conter a palavra selvagem das redes. Se há insensatez nas redes sociais, por que não pode também nascer delas uma forma própria de sabedoria? Alguns cancelamentos envolvem casos reais de discurso de ódio e exposição indevida de pessoas vulneráveis, por simples impulso sádico ou numa caçada inescrupulosa de visualizações. Quando um influenciador filma-se zombando de uma criança doente, quando uma celebridade submete alguém a constrangimento público por sua opção política, sua sexualidade, sua religião ou seu pertencimento étnico, é uma reação social saudável que o ofensor veja sua popularidade decrescer e que perca seguidores.

Ainda assim, o exame do mecanismo concreto dos cancelamentos em avalanche revela o que eles podem conter de covarde e de injusto. Frequentemente, trata-se de uma reação coordenada, que se espalha pelas redes como fogo na forragem, a partir da fagulha lançada por um usuário ou por um grupo que aponta o crime e indicia o infrator. O denunciado já sai, pela pressão coletiva, na qualidade de réu. Como não lembrar das multidões durante as revoluções francesa ou chinesa, dispostas às piores violências e injustiças, uma vez incitadas por oradores demagógicos do alto de seus caixotes? O sentido das nuances pode ser perigosamente enfraquecido no automatismo das reações em manada.

O cancelamento como comportamento coletivo e coordenado insere-se na linhagem de outras modalidades potencialmente opressivas de controle da palavra pública na era digital. O linchamento virtual já era uma prática estabelecida quando as avalanches de cancelamentos se tornaram objeto de discussão pública. O linchamento não implica sempre a perda de seguidores, mas sim o acúmulo de insultos em caixas de comentários ou postagens, no mais das vezes de desconhecidos, sobre um único alvo designado como inimigo público – mesmo que seus pecados sejam estritamente privados (muitas vezes, de natureza sexual). 

O fechamento da exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, em 2017, no Santander Cultural em Porto Alegre, revelou outra forma de controle autoritário da palavra pela internet: a censura pelas redes. Nela, um grupo de opinião não se satisfaz em apenas expor sua discordância ou seu descontentamento quanto a um discurso, mas exige sua supressão da esfera pública pela pressão organizada. Cancelamento massivo, linchamento virtual e censura pelas redes – nenhuma dessas novas práticas serve de marcador ideológico, podendo ser mobilizadas à esquerda e à direita. Todas são perigosas à liberdade de expressão, por trazerem formas renovadas de intimidação pela autoridade coletiva, agora amorfa e anônima nas redes, para além do aparato oficial de Estado. 

Não apenas o ato de governar conhece novas dificuldades nestes tempos de pensamento grupal. O próprio pensamento, entendido como exercício crítico pessoal e intransferível, pode encontrar-se sob ameaça. 

Figuras que se entendem como intelectuais de redes sociais se veem submetidas a essa pressão. Foi o caso de alguns influenciadores da direita – sobretudo de um certo conservadorismo ilustrado – que apoiaram Bolsonaro na eleição de 2018 e que em 2020 batem no peito com lágrimas nos olhos diante das ruínas deixadas pela presidência que escolheram. Sabiam à época o que era o bolsonarismo como seita política autoritária. Ainda assim, avalizaram seu projeto. Por quê? Para não desagradar. Para não contrariar seus seguidores. Para não passar por menos puros que o esperado. Agora, alguns – e não os piores – se dizem arrependidos. Toda contrição pública sensibiliza. Seus depoimentos, sobretudo, são significativos de como, no ambiente digital tal qual o conhecemos, a avalanche de cancelamentos é especialmente intimidante a quem reivindica nas redes uma identidade como intelectual. 

A internet constitui um mercado das ideias, e os intelectuais tendem a atuar como fornecedores dos discursos-mercadoria demandados por cada nicho desse mercado: os liberais, os conservadores, os comunistas, os ecologistas. Não é o mesmo que ocorre numa loja de roupas ou na música popular? Essa sujeição do intelectual-produtor ao leitor-consumidor é tão mais extrema que muitos dos canais que ligam um ao outro são diretamente monetizados, quando não servem de ponte para a penetração no mercado editorial ou na mídia. Uma relação assim constituída envolve, portanto, a capacidade do intelectual não só como influenciador digital, mas como agente econômico. Nesse cenário de dependência material do intelectual em relação a um público, não surpreende que muitos abdiquem da soberania sobre seu pensamento em favor de discursos estereotipados, sempre os mesmos: o leitor-consumidor anônimo é um amo intratável. Não suporta muito bem a contrariedade. Sabemos de saída o que o articulista conservador ou o que o acadêmico liberal ou o que o escritor esquerdista dirá antes mesmo de ouvir sua live.

Tampouco surpreende que a reação por cancelamento seja especialmente atemorizante ao intelectual das redes. Seu valor de mercado é medido pelo número de seguidores, assim como acontece com Taylor Swift. É claro que Taylor Swift (ou Anitta ou Kanye West) conta com uma assessoria de mídia para polir eventuais derrapagens. O último videoclipe do rapper, se promovido com eficiência, ainda pode compensar sua última grosseria com um fã ou seu último insulto machista. 

Para o intelectual das redes, o poder dissuasivo dos cancelamentos em avalanche é mais agressivo, e suas consequências indiretas são mais nocivas. Inibem a capacidade do pensamento vivo de escapar à posição em que se gostaria de encerrá-lo, de afirmar sua verdade ao preço da aprovação geral, contra tudo e contra todos, se necessário. Esperava-se que a internet marcaria a era do debate generalizado. Se o que se seguiu foi a era de cancelamentos massivos, essas esperanças ficaram novamente para o futuro.

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS


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