Freud, um expressionista

Freud, um expressionista
(Arte: “The unconscious dreams according to Sigmund Freud”, de Maxim Fomenko)

 

 

Qual o timbre do som irradiado pela atmosfera da República de Weimar? Estridente talvez seja aquele a melhor sintonizar-se ao contexto weimariano. Fluxos intensos e traumáticos, presentes ali em quase todas as esferas da vida, tornavam convulsivos os meios de expressão artísticos, políticos e intelectuais. Freud esforçou-se de todas as maneiras para amainar o caráter convulsivo da psicanálise. Na década de 1920, insistia em manter-se apartado dos ventos dali soprados, ainda que ares vacilantes da época o tenham levado a publicar das Unheimliche já em 1919.

É importante que se diga logo: intensas correspondências entre expressionismo alemão e elaborações freudianas ficam sugeridas em várias linhas de seus escritos. Embora do lado bibliográfico psicanalítico o alinhave daquele movimento à teoria de Freud mostre-se praticamente desértico, o interesse da costura não se limita a uma simples curiosidade sobre mais uma das camadas a comporem as diferentes origens psicanalíticas. Se hoje ainda vale o esforço de reacender faíscas expressionistas nos escritos de Freud, isso se dá em função das perturbadoras e atuais ressonâncias de tal intersecção. Dito de outra maneira: o desafio de afinar os ouvidos na escuta daquele turbilhão, e sintonizar Freud à onda sonora daquela época, importa apenas na medida em que isso permite articularem-se questões do presente, assim como esboçarem-se algumas respostas aos nossos entraves sociais, políticos e psíquicos mais recentes. Obras artísticas e intelectuais dos períodos anterior e posterior à Grande Guerra ainda parecem oferecer desafios consideráveis para reflexões sobre formas e conteúdos de produções contemporâneas.

Escavar origens significa aqui, como em Walter Benjamin, dilatar extremos distantes da ideia, ou seja, devolver-lhes densidade. No mergulho que faz em seu próprio tempo, Benjamin ressuscita, em Origem do drama barroco alemão, a concepção barroca da história ao observar afinidades entre a década de 1920 na Alemanha e os contornos dramáticos do teatro; a pós-história do drama, diz o filósofo, “não é o teatro classicista, e sim o drama expressionista, que se assemelha ao Barroco tanto pela situação histórica como pelas características de sua linguagem”. Ele sintetiza conexões entre Barroco e expressionismo alemão ao usar os seguintes termos: “como o expressionismo, o Barroco é menos a era de um fazer artístico que a de um inflexível querer artístico. É o que sempre ocorre nas chamadas épocas de decadência”.

O querer artístico significa a percepção de um esgotamento das instâncias institucionais que demandavam os serviços artísticos e intelectuais para o seu funcionamento. O querer produzir diferencia-se do necessitar produzir como meio de vida alinhado às regras e leis institucionais. Em períodos de decadência, abre-se uma fenda político-social. Artistas e intelectuais descolam-se da adesão aos sistemas vigentes, que condenam as artes e o pensamento a fins imediatamente utilitários. Pode-se dizer que o expressionismo alemão revela os primórdios do período de declínio da modernidade que hoje chega a seu ápice. Naquela época, o expressionismo alemão mostrava-o como uma espécie de ilusão do caráter utópico das vanguardas europeias, assim como o Barroco representara a queda do período medieval, cujo pilar estava na aliança inextricável entre as monarquias feudais e o poder da Igreja católica.

Em sua obra inaugural A interpretação dos sonhos, Freud resgata a estrutura clássica da peça Édipo-rei de Sófocles, comparando-a à estrutura moderna barroca de Hamlet, de Shakespeare. O trecho em que cita o poeta e dramaturgo inglês denota as ondulações obsessivas e melancólicas do príncipe barroco. O universo interior dos soberanos, que são ali tiranos e mártires, emerge inflado em tons sombrios, titubeantes e recriminadores de si mesmos. É curioso observar como o sentido das análises freudianas se cruza com as de Walter Benjamin em Origem do drama barroco alemão. Eis a passagem de Freud:   

 

[…] o Hamlet de Shakespeare tem suas raízes no mesmo solo que Oedipus Rex. Mas o tratamento modificado do mesmo material revela toda a diferença na vida mental dessas duas épocas, bastante separadas, da civilização: o avanço secular do recalcamento na vida emocional da espécie humana. No Oedipus, a fantasia infantil imaginária que subjaz ao texto é abertamente exposta e realizada, como o seria num sonho. Em Hamlet ela permanece recalcada; e – tal como no caso de uma neurose – só ficamos cientes de sua existência através de suas consequências inibidoras. Estranhamente, o efeito esmagador produzido por essa tragédia mais moderna revelou-se compatível com o fato de as pessoas permanecerem em completa ignorância quanto ao caráter do herói. A peça se alicerça nas hesitações de Hamlet em cumprir a tarefa de vingança que lhe é atribuída; mas seu texto não oferece nenhuma razão ou motivo para essas hesitações […]. Segundo a visão que se originou em Goethe e é ainda hoje predominante, Hamlet representa o tipo de homem cujo poder de ação direta é paralisado por um desenvolvimento excessivo do intelecto. (Ele está “amarelecido, com a palidez do pensamento”.) Segundo outra visão, o dramaturgo tentou retratar um caráter patologicamente indeciso, que poderia ser classificado de neurastênico. […] o ódio que deveria impeli-lo à vingança é nele substituído por autorrecriminações, por escrúpulos de consciência que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor do que o pecador a quem deve punir.

 

Em O eu e o isso, Freud parece aprofundar, até quase sua dissolução, justamente esse universo interno hamletiano. Formando espaços psíquicos, que parecem corresponder a algumas das cenas mais conhecidas de filmes expressionistas alemães, Freud acentua o jogo luz e sombra barroco ao expandir e arquitetar tensões e contrastes espaciais. Forja uma arquitetura capaz de desvendar a dialética entre exterior e interior. O mundo interno torna-se imagem invertida do mundo externo. Daí segue-se toda a lógica psicanalítica capaz de desvendar as regras que compõem essa engenharia.

Na ocasião de seu advento, a psicanálise gerou alvoroço. Mesmo pesquisadores, que reconheciam a força de descobertas freudianas, teimavam em recusar o raciocínio próprio à maquinaria inconsciente. Insistiam nas diferentes tonalidades da consciência, vistas apenas enquanto fenômenos gradativos de intensidade ou nitidez. Nessa perspectiva resistente, avessa à engrenagem do inconsciente, eles alegavam: “assim como há processos que são conscientes de maneira muito viva, forte, tangível, também experimentamos outros que são conscientes de forma débil, quase imperceptível, e os mais debilmente conscientes seriam bem aqueles aos quais a psicanálise deseja aplicar o inadequado termo ‘inconsciente’”. Vê-se que tais processos não podiam ser vistos como pertencentes a outra esfera que a da sã consciência. Um pouco de atenção, ponderavam ainda agarrados às demarcações da consciência, bastaria para revelar os tons menos nítidos dessa esfera. Freud recupera o colorido barroco dessas articulações opositoras do inconsciente: […] “Havendo tantas gradações de iluminação, da luz mais evidente e ofuscante ao mais fraco bruxuleio, não existe absolutamente escuridão”. Entretanto, já marcadamente expressionista, Freud percebe que:

 

[…] uma tal equiparação do impercebido ao inconsciente foi claramente feita sem levar em conta as relações dinâmicas, decisivas para a concepção psicanalítica. Pois há dois fatos que são aí negligenciados: primeiro, é muito difícil, requer um enorme esforço, dedicar suficiente atenção a algo assim impercebido; segundo, quando se consegue isto, o antes impercebido não é então reconhecido pela consciência, mas parece-lhe, com frequência, inteiramente desconhecido, a ela oposto, e é rudemente rejeitado. Portanto, recorrer ao pouco percebido ou não percebido, evitando o inconsciente, é apenas um derivado do preconceito que vê como estabelecida de uma vez por todas a identidade do psíquico com o consciente.

 

Em suas variações, o movimento expressionista reconheceu, antes e depois das experiências de guerra, como o arranjo arquitetônico interno estruturava-se a partir de dinâmicas dialéticas de opressão e dominação, pânico e desamparo, amor e ódio, poder e submissão, saber e não saber, dor e prazer, morte e vida. Cenas de filmes expressionistas transformavam luz em dimensões espaciais. Como disse antes, contrastes gradativos de tonalidades claro-escuro surgem mais como intensas tensões dialéticas. Na realidade lancinante da República de Weimar, os atritos urravam e a oposição entre classes no campo sociopolítico e das formas e conteúdos artísticos escancaravam a moral burguesa que estava a serviço de projetos imperialistas e acumuladores de capital pela elite econômica. A devastação psíquica e corpórea atendia aos privilégios do segmento socioeconômico mais alto, que não deteve sua ambição, ainda que ela tenha implicado conduzir cidadãos vulneráveis em direção à morte. Diante de atmosfera tão trepidante, a topologia freudiana tanto assume as próprias relações conflitivas que desenham o projeto burguês moderno como escancara seus limites, tão fortemente denunciados pelos expressionistas alemães.

Dedicando-se aos ensaios freudianos Luto e melancolia e O eu e o isso, Judith Butler renovou as análises em torno da melancolia em A vida psíquica do poder. Com elas, identificou limites do próprio sujeito moderno. Ali Butler abordará a melancolia como condição de possibilidade para a própria existência de um aparelho psíquico aos moldes da segunda tópica freudiana. Ou seja, o espírito taciturno hamletiano, anteriormente mencionado, traz “o mundo social […] eclipsado na melancolia e […] o surgimento de um mundo interno estruturado na ambivalência”. O que se vê com Butler é o próprio arranjo melancólico como inaugural do sujeito moderno e da imobilidade que congela o campo político. Enredada na ambivalência, a articulação melancólica é uma volta que se estabelece como “tropo fundador no discurso da psique”. Quem é “o ‘si-mesmo’ que toma a si mesmo como seu próprio objeto?”, pergunta-se ela. Ao que tudo indica ali, a própria circunscrição de uma topologia “interna” depende da articulação melancólica ante o Outro perdido:

 

Os discursos psicológicos que pressupõem a estabilidade topográfica de um ‘mundo interno’ e suas várias ‘partes’ não compreendem a ideia crucial de que a melancolia é precisamente o que interioriza a psique, isto é, torna possível se referir à psique através desses tropos topográficos. A volta que vai do objeto perdido para o Eu é o movimento que torna possível a distinção entre eles, que marca a divisão, a separação ou a perda que, antes de tudo, forma o Eu.

 

É nesse sentido que o movimento do objeto perdido ao Eu não substitui com sucesso o primeiro pelo segundo, mas consegue marcar e perpetuar a divisão entre os dois. Essa volta, portanto, cria a divisão entre o Eu e o objeto, entre o mundo interno e o mundo externo que parece pressuposta. Para que o sujeito pré-constituído pudesse fazer a volta que vai do objeto até o Eu, seria necessário que se passasse de uma realidade externa pré-constituída para uma interna. Mas isso não explicaria a própria divisão entre interno e externo da qual depende. Na verdade, “não está claro que seja possível entender essa divisão fora de seu contexto na melancolia […] [que] envolve a produção de um mundo interno, bem como um conjunto topográfico de ficções que estrutura a psique”. Butler provoca uma erosão na arquitetura psíquica, mostrando que a construção psicanalítica, que parecia dar conta de explicar o sujeito moderno, estava ela mesma marcadamente comprometida com os contornos de sua época.

Aqui fica mais preciso o lugar no qual nos situamos hoje. Se a contrastante subdivisão topológica moderna entre interior e mundo externo aproxima e diferencia o barroco do expressionismo, este mostra seus limites para pensar o contemporâneo justamente nos espaços que expõe; sim, pois as fronteiras expostas pela topologia expressionista ainda deixavam algo reservado ao plano fantástico e melancólico. Mesmo que constate seu abalo, as obras expressionistas estão circunscritas aos modelos europeus vanguardistas e não respondem a muitas das questões da atualidade. É preciso reconhecer, porém, que graças aos seus movimentos se tornou possível ultrapassar verdadeiramente as barreiras modernas. Nem barrocas no realce dos vultos lúgubres e melancólicos internos, nem expressionistas na expansão de espacialidades que resguardam o mistério do fantástico e do inapreensível, a produção contemporânea explora novos repertórios, distantes da regiões consagradas, cujo repertório é ocidental europeu.

Não caberá abrir aqui explorar o vasto campo de produções artísticas barrocas, expressionistas e contemporâneas. Trata-se apenas de observar que Freud operou como um cirurgião sobre sombras e luzes. Ao fazer isso, desestabilizou as bases de sustentação da estrutura moderna, ainda que seu esforço contínuo tenha sido o de erguer a psicanálise sobre bases modernas iluministas. Inchar esse mundo interno ao extremo até implodi-lo para uma exterioridade, como fizeram ele e outros psicanalistas, profanou e dissolveu o que social e politicamente mantinham intactos os mistérios do sujeito. Ao absorver o ensino de Freud, Jacques Lacan esgarçou o arcabouço psíquico moderno até sua diluição, colocando significantes em circulação na superfície de construções discursivas. Contudo, o psicanalista francês ainda não tinha como sintonizar seus ouvidos aos clamores mais agudos que enterram de vez as ilusões modernas. Em verdade, apenas hoje seremos capazes de observar a ruína completa da modernidade, assim como o advento da modernidade no barroco assistiu à dissolução total do sistema medieval. Estamos diante desse momento derrisório, que se iniciou com o expressionismo alemão. Caberá à psicanálise e aos que querem estar com os pés assentados em seu próprio tempo fazer jus a esse episódio único na história – as reações para manter bases arcaicas não serão, contudo, pequenas.

 

 

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de Sublimação e Unheimliche (Pearson, 2017), O sensível e a abstração: três ensaios sobre o Moisés de Freud (E-galáxia, 2020) e organizadora de Freud e o patriarcado (Hedra, 2020).


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