Fragmentos do intelectual
(Foto: Marcus Steinmeyer)
I
MAX STIRNER NA SBPC
Veja que maluquice: falar sobre o Max Stirner na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência! Foi minha primeira intervenção depois que voltei do doutorado na França, em 1974. Havia 300 pessoas na sala, sem microfone, só fumaça e, no meio daquele nevoeiro todo, ninguém sabia do que eu estava falando. Ao escrever o texto “Ideia e ideologia” para esse encontro, me dei conta de que Stirner & Cia eram os “ideólogos franceses”. Portanto, no olho do furacão estavam os ideólogos, tanto alemães quanto seus símiles franceses de quase um século depois; estava a compreensão das transformações filosóficas como “revoluções discursivas”, uma expressão típica da ideologia francesa e cuja matriz estava lá na ideologia alemã – eles só fazem revoluções discursivas, é frase contra frase, ideia fixa. E quem tem ideia fixa? São aqueles diabos de intelectuais alemães. No cerne de A ideologia alemã, que é uma teoria da divisão do trabalho – trabalho intelectual e material, segundo o jovem Marx – estavam os intelectuais, os ideólogos. Esses ideólogos tinham um correspondente, eram longevos e chegavam até a França. Os putschs linguísticos, as revoluções linguísticas, a maneira de falar que mudava o mundo e que eu estava quebrando a cabeça para enfrentar – queria mostrar que a dialética não é uma maneira de falar, como disse o Gérard Lebrun em A paciência do conceito – a solução estava ali. Aí os intelectuais entram no foco.
UM REFERENTE PARA A DIALÉTICA
O lance era o seguinte. Eu precisava mostrar que o hegelianismo tinha um pé na realidade, que o sistema hegeliano tinha um referente. Esse referente é o que todo programa materialista, programa de crítica da filosofia ou da ideologia, tem que ter, ou então você não émarxista para além das meras intervenções metodológicas. O elo que eu precisava para passar do sistema para a realidade era esse mix: a figura do intelectual, uma entidade sociológica pensante que formulava frases. Não sei que dia foi, que ano foi, o estalo de Vieira: relendo pela enésima vez a “Introdução” da Fenomenologia do espírito, quando aparece a ideia de “raciocinação”, falei: “essa raciocinação tem cara de dialética”. Como na graduação eu tinha feito um trabalho sobre O sobrinho de Rameau, já estava com o ouvido educado: na Fenomenologia do espírito, a consciência dilacerada do sobrinho de Rameau é a primeira apresentação ao vivo da dialética em funcionamento. O romance picaresco de um parasita, puro vagabondage, aí está a dialética, porém inconclusiva. Quando vi a semelhança com a “raciocinação”, eu disse: “É aqui que eu vou entrar. Aqui é meu Abre-te, Sésamo”.
VENENO
O mais anti-intelectual dos filósofos que eu estava examinando era o próprio Hegel. A dialética era a sublimação ou transposição para o plano do conceito daquilo de que ele mais tinha ojeriza, o intelectual da ilustração francesa encarnado pelo Sobrinho de Rameau e depois pela ironia dos românticos de Iena. Ele não tolerava os românticos de Iena. O livro do Diderot ele achava genial, mas achava também que aquilo era pura “vaidade”, o nada vazio do niilismo puro. E ele vai transpor aquilo para o plano especulativo. É a origem da proposição especulativa. Na verdade, eu estava dizendo: “olha, o central é o intelectual, mas pelo filtro do anti-intelectualismo hegeliano”. Essa é a Nêmesis dele. Por isso ele vai atrás. Quando Goethe pergunta: “Sr. Hegel, o que é essa história de dialética?” Hegel responde: “É o espírito de contradição organizado. É o seu diabo, no qual eu estou pondo um freio. A dialética é satânica e eu vou organizar esse satanismo. É esse espírito diabólico organizado que eu estou chamando de dialética: um sistema do saber que passa pela contradição”. É um mecanismo envenenado por definição. Eu estava interessado no veneno, por isso não dei o passo adiante. O Bento dizia: “Tem que dar o passo adiante!”. Eu respondia: “Não interessa. Pra quê?”.
INTELLIGENTSIA
Então estudo as várias refrações da constituição da ideia de intelligentsia, a história da intelligentsia em situações de condição periférica avassaladora. Como já disse e redisse cem vezes, esta é a hora e a vez do esquema do Roberto Schwarz. Esqueci de lembrar que, naquele fumacê da SBPC, arrumei um jeito de expor As ideias fora do lugar. Acho que foi uma première nacional, pela cara de espanto da moçada no gargarejo. Começo pela França, depois vou para a Alemanha, passo de raspão pela Itália e pelo Gramsci, com o propósito de chegar à Rússia, aonde nunca consegui chegar. Na Inglaterra não existe esse fenômeno, como tampouco vai existir na subsidiária estadunidense. Aí intelectual não conta, é marginal em todos os sentidos. Ele é apenas alguém confinado numa cidade universitária como Cambridge ou Oxford, que pode falar qualquer abobrinha em latim, contanto que não se meta na vida política. Por isso é o ideal de todos os conservadores, de Tocqueville a Raymond Aron. É o inferno dos intelectuais, mas é o paraíso para eles. E o paraíso dos intelectuais era a França, por causa da Ilustração.
II
DEMIURGOS DA NAÇÃO
Quando eu cheguei a São Paulo em 1974, minha missão pessoal era encerrar meu analfabetismo cultural em relação à tradição crítica brasileira. Comecei a estudar o Brasil como um analfabeto filosófico se iniciando. Eu chego e me deparo com o seguinte fenômeno: encontro um revival de estudos sobre o pensamento autoritário de crítica à República Velha. Estava todo mundo lendo Oliveira Viana, Alberto Torres, Plínio Salgado, Otávio de Faria, todos os críticos autoritários do liberalismo. Todo mundo tinha embarcado na legenda de que os fundamentos da ditadura de 1964 estavam no pensamento de direita dos anos 1920 e 1930 e que, portanto, tínhamos de ler a crítica antiliberal da direita brasileira clássica pelo prisma da nova conjuntura autoritária. E descobriam o quê? O autoritarismo não só estava enraizado numa sociedade patriarcal de origem escravista, mas tinha raízes intelectuais nesses grandes autores, uma espécie de origem ideológica eminente, por vezes refinada. Mesmo que ninguém tematizasse, o tema naquele momento eram os intelectuais, a figura do intelectual na sua versão autoritária, como demiurgo da nação, como intrinsecamente imbuído de sua vocação dirigente. A fase repressiva da ditadura arrefecia e se imaginava que, finalmente, a ditadura terminaria e que nós estávamos apressando o seu término estudando os pressupostos ideológicos lá pra trás. E a figura do intelectual como um demiurgo da nação e figura dirigente já estava pintando ali. Depois ela vai reaparecer… quando? Em dois momentos, depois da Abertura, nos anos 1980 e 1990, vai reaparecer com um presidente sociólogo e um presidente sindicalista, mas cujo partido era composto eminentemente de intelectuais que vinham do confronto com essa tradição teórica. De modo que a ideia do intelectualocentrismo brasileiro, da vocação dirigente dos intelectuais, estava no ar desde o momento em que eu pus os pés no aeroporto de Viracopos.
O IRMÃO SIAMÊS
Por definição, o intelectual brasileiro é um ser engajado, não no sentido sartriano. É um ser empenhado na construção nacional. A construção nacional gira em torno desses demiurgos da nação que são os intelectuais. Funcionaram nos anos 1920, 1930 e mesmo antes da Primeira Guerra. Impregnaram todo o modernismo brasileiro. Quem é o irmão siamês dessa figura? São os militares! Os militares pensam exatamente a mesma coisa. Notem que mesmo no seu jeito bronco, o Mourão arremeda todo o repertório dos autoritários de ontem acerca do pretenso caráter nacional brasileiro, e tome asneiras de cabo de esquadra sobre índio isto, negro aquilo. Nada mais parecido com a delirante presunção dirigente e tutelar dos intelectuais brasileiros desde a sua formação do que os militares, que também se acham o sal da terra, só que com o monopólio das armas: se consideram a semente geradora do Estado, que por sua vez conformou a nação.
INVENTANDO GRAMSCI
E tome hegemonia! E tome intelectual orgânico! E tome intelectual tradicional! E tome intelectual coletivo! E tome a vinculação ou identificação entre Estado e intelligentsia! E tome outra coisa: a política como algo decorrente do exercício virtuoso de uma hegemonia e portanto o lado construtivo da política e portanto… preparemo-nos para governar! Gramsci passou a ser o autor de referência na esquerda brasileira em meados dos anos 1970. Inclusive, o Gramsci passa a ser central também no PT. É que a esquerda brasileira estava mudando de estratégia, estava pensando em pós-hegemonia comunista e em pós-luta armada e estava descobrindo a ideia de hegemonia. A revolução saiu de pauta, a não ser nos discursos. Hegemonia é: você ganha uma eleição, faz a travessia das instituições e prepara a antessala da revolução mudando o senso comum. Daí a centralidade da cultura e, dentro da cultura, do intelectual que formula. Isso os militares e a nova direita vão descobrir só em meados dos anos 1990, ao perceberem a não tão óbvia assim mudança de paradigma: “Ganhamos na transição, a sociedade continua sob o garrote militar, mas a nossa moral para intervir diminuiu, vamos intervir pontualmente aqui e acolá, mas nós perdemos e eles ganharam a última rodada, que é a rodada da hegemonia”. Está lá no Orvil, o livro ao contrário dos militares.
PARADOXO AMBULANTE
Intelectual é aquele que não adere. Não pode aderir por definição, pois se adere, a vida mental cessa. Esse era o meu ponto. Eu me contrapunha ao dogmatismo redescoberto da nova esquerda – que no fundo estava se preparando, nada mais nada menos, para virar gestionária – me escudando na figura do intelectual. Embora tivesse assinado minha filiação eleitoral ao PT, eu não queria ser militante. Foi quando comecei a descobrir certas coisas. Como era schwarziano de carteirinha, era frankfurtiano. Aí começava a encrenca. A tradição crítica brasileira tinha uma dimensão afirmativa inescapável. Seguindo na cola de Roberto Schwarz e de Antonio Candido, que eram os mais próximos, eu tinha que encarar essa dualidade: continuar ao mesmo tempo descrente da ideia de progresso e de formação – o golpe era a palavra definitiva: não haverá mais construção de uma sociedade orgânica no Brasil – e por outro lado colocar tijolinhos na construção nacional, lutar pelas liberdades, pela universidade, ser contra a ditadura e por aí vai. Portanto, achar que a história do capitalismo estava a nosso favor, quando sabíamos intimamente que não estava. Aí as duas almas faustianas que eu enxergava no Roberto. Ele era frankfurtiano e, ao mesmo tempo, “nacional-popular-desenvolvimentista” como todo mundo que se opunha à ditadura. De um lado a Revolução Cubana, de outro os frankfurtianos. As duas coisas se anulavam: um paradoxo ambulante. A salvação estava na ironia, que aliás já era mais do que objetiva: você tem que se equilibrar na corda bamba e, de certa maneira, praticar uma espécie de permanente ironização das ideias.
DUAS CANOAS
A minha solução de compromisso era adotar a posição do Antonio Candido. A teoria dele acerca do que chamou de modesto radicalismo de classe média era até bem simples, quase um ovo de Colombo. O intelectual de classe média radical era aquele que não pensava em termos de classe, mas sim em termos nacionais, e buscava encontrar uma saída para o Brasil. Uma saída civilizada que incorporasse aqueles inorgânicos diagnosticados pelo Caio Prado como um impasse a ser superado. Mas, ao mesmo tempo, esse radical de classe média não poderia dar o passo principal, que era aderir à revolução. Quando explicita essa teoria do radicalismo no Brasil, ele diz que é um pé em cada canoa. O radical é de classe média, assim como a teoria da classe revolucionária, que vem de fora – era assim desde a social-democracia alemã. Portanto, radicais e revolucionários se entrecruzam de vez em quando. Com uma diferença: o radical vai até certo ponto, depois ele retorna para sua classe, ou seja, ele não atravessa a linha. Na hora de atravessar a linha de classe e passar para o outro lado, o radical contemporiza. Tal contemporização é o pão cotidiano desses grandes pensadores da tradição crítica brasileira, que começa com Joaquim Nabuco e vai até o último sobrevivente dessa tradição, que é o Roberto Schwarz.
III
CHOQUE
Pares não! Mestres! Pior: se fossem pares tudo bem, mas eram os professores! A escola paulista de pensamento. Para vocês terem uma ideia do choque que nos provocou essa reviravolta. Pensando retrospectivamente, estado de choque por uma inépcia mental minha. Não percebi que sempre foi assim. O Fernando Henrique falava de brincadeira: “eu quero ser duas coisas na vida: ou uma ou outra, por menos não deixo – papa ou presidente da república. Papa… eu acho que vai ser meio difícil”. De fato, ele sempre teve essas ambições, não era vaidade ou brincadeira, ele tinha a convicção de que era essa a vocação da Faculdade de Filosofia desde a sua fundação pela oligarquia antivarguista paulistana. A revanche de 1932 se consumava. E nós, sobretudo eu, muito ingênuo, não percebi que isso estava embutido no projeto. Não tinha nada de novo. Vinha lá de trás, vinha dessa dimensão afirmativa construtiva da intelligentsia.
SIM SEM UM PINGO DE NÃO
Foi a isso que eu reagi. E reagi de uma maneira mais moralista do que materialista. Reação de alguém que não entendia aquele tipo de capitulação. Você pode se render se foi vencido, mas no caso era uma capitulação entusiástica: a entrada do Brasil na Globalização, que o Fernando Henrique chamava de Novo Renascimento. Nunca se veria tanto conformismo na história intelectual brasileira. Um grande e entusiástico Sim sem um pingo de Não. Os primeiros pingos começariam a cair anos depois com a coleção Zero à Esquerda. Uma frente ampla, dos desenvolvimentistas da UFRJ e da Unicamp à colapsologia de Robert Kurz. E começaram a cagar regra como todo bom paulista uspiano, sempre evocando a complexidade dos fatos que os atrasados não entendiam. Quantas vezes não tive que ouvir me chamarem de marxista resmungão e moralista, que não estava entendendo nada, e que eles estavam botando o país nos trilhos da modernidade, completando a construção da nação, que o capitalismo estava a nosso favor, a globalização empurrava os ventos na nossa direção. Em última instância, entrava em ação a ilustração brasileira, a ilustração paulista, os Aufklärers, que estavam ali para explicar como as coisas funcionam. E de uma espécie nova: ilustrados de origem marxista. Eram, portanto, os mais habilitados a tocar o serviço, no caso a construção nacional num ambiente capitalista irrecusável. Sobretudo porque chegaram ao poder depois do naufrágio da União Soviética. Não havia alternativa, literalmente; não era só repetir a Thatcher, realmente não havia alternativa. Num artigo de 1994, José Luís Fiori deu a explicação materialista correta, mostrando como FHC não só não renegara nada do que escrevera, como passara a comandar a própria versão conservadora da teoria da dependência; aderira, em suma, ao subcapitalismo preconizado pelo famigerado Consenso de Washington. Eu apenas reagi pelo prazer de chamar esses intelligenti de idiotas. Como na acepção do Adorno e do Horkheimer: a estupidez da inteligência alemã diante da ascensão do nazismo. Me interessava sublinhar a bêtise, as bobagens. Daí a ideia de dicionarizar o novo Febeapá, desta vez o da Era Tucana.
ASSUNTO ENCERRADO
Outro paradoxo: durante os anos 1980, me lembro muito bem do Roberto fechando o diagnóstico (no sentido médico, querendo dizer óbito), me fazendo compreender pela primeira vez que a famigerada formação do Brasil tinha ido para o brejo. Por exemplo, um sintoma da patologia nacional era o fato de que nos concernia de perto, de você ter um país inacabado, porém com um sistema cultural que funcionava, cuja formação se completara. Mesmo assim não tínhamos como não votar no PT. Embora desconfiasse que o partido já era uma ficção política, uma miragem que impressionava mas que não tinha mais nenhum fundamento no chão histórico produtivo, a dita sociedade do trabalho tinha ido para o espaço. Quando eles chegaram ao poder, bateu no teto e o sonho acabou. Assunto encerrado. Podemos passar livremente, sem consciência pesada, para a oposição, e dizer o que significa, como diria mais tarde o Marildo Menegat, essa “gestão da barbárie”. Malgrado o próprio PT, que acreditava estar dando um passo à frente, subindo nos ombros dos tucanos para levantar mais uma laje no mito progressista do país em construção na periferia do capitalismo, e desta vez rumo ao centro.
LINHA CRUZADA
A sessão das quartas foi iniciativa de alunos que queriam que eu voltasse a dar aula. Eu disse: “aula não! Quero fazer outra coisa. Já paguei meu preço, já puxei cadeia, 30 anos preparando aula. Vou continuar sendo professor, mas de outro jeito”. Uma parte desses alunos queria ouvir o que havia do bom e do melhor em sessões especiais. Aí no primeiro ano, com enorme afluência, grandes nomes desfilaram, com um ou outro bagrinho no meio, dizendo coisas não menos interessantes. Me lembro, por exemplo, de uma primeira demolição da festejada e tucanérrima Sala São Paulo. Nesse momento me dei conta do que estava acontecendo comigo: estava me sentindo cada vez mais à vontade, aprendendo mais com a outra metade da laranja. Como já era mesmo carta fora do baralho na Escola Paulista do Pensamento, era natural que começasse a me sentir em casa no convívio com uma nova geração que despontava e que começamos a chamar naquelas sessões de “intelectuais precários”. A minha sobrevivência intelectual, se ela existe ainda, já beirando os 80, se deve em grande parte ao acidente dessa linha cruzada.
PENSANDO POR FORA
Entre 2001 e 2002, outro corte. O Fórum Social Mundial era ambivalente: manipulado como instrumento eleitoral do PT, mas tinha inspiração zapatista, antiglobalização, anticapitalista, que vinha de Seattle, trazido por franceses que estavam pouco se lixando para o PT & Cia. É claro que eu fui! Fui procurar a molecada da Ação Global dos Povos. Foi lá que conheci o pessoal que iria fundar o Passa Palavra, o Movimento Passe Livre. “Quem é esse pequeno grupo de pessoas de passagem por um breve período da história?” Um pessoal de esquerda, pensando por fora, que, pela primeira vez, não estava mais chorando o leite derramado da construção nacional interrompida. Nem aí para a progressista ilusão do desenvolvimento, recuperar a distância que nos separava do centro. Tampouco sensíveis à chantagem de um produto escasso chamado emprego, que aliás nem existia mais. Mais “por fora” da tradição crítica brasileira, impossível. O outro mundo possível do Espírito de Porto Alegre passava a léguas do pote de ouro da Modernidade no fim do arco-íris. Coincidência ou não, o Seminário das Quartas começou naquele mesmo ano de 2001.
ÀS ORDENS
“Nossa escola está pronta e você nos prometeu que ia ajudar.” “Claro, estou às ordens.” Me deram carta branca para fazer o que bem entendesse porque eu era um professor, não metia a colher de pau na política deles. Na hora da cachaça – eu tomava cerveja – eles me pediam palpite. Aí era palpite de amador, mas eu falava sério: “esse negócio de PT vai dar mal”… “vocês estão entrando em governo”… Enfim, falava como professor. Me aproximei do MST, em 2005, como bisneto do Joaquim Nabuco ou sobrinho de Antonio Candido. Noves fora a envergadura daqueles altos personagens, também não era um recuo ortodoxo, era simplesmente uma modestíssima persistência daquela vocação radical de classe média de que lhes falei.
TROCANDO FIGURINHAS
A era lulista começou a se exaurir a olhos vistos. Antes de a pax explodir em 2013, a fórmula mágica parou de funcionar. Era impossível fazer todas as conciliações ao mesmo tempo. Uma hora teria que explodir e explodiu. “Batemos no teto” é a primeira frase do texto “Nunca fomos tão participativos”, da Erminia Maricato. Conversando com jovens que eu estava conhecendo por essas andanças, com gente que eu estava conversando aqui e acolá, trocando figurinhas, eu sugeri abrir uma sessão no site do Passa Palavra com testemunhos de militantes ou ex-militantes desse esgotamento e fiz aquele textinho de convocatória. Entre 2011 e 2012 aconteceu a saída dos 51 do MST, então fizemos esse encontro com gente que tinha saído, mas também com gente que tinha ficado, tudo sangue bom, óbvio. Veja só a peculiaridade disso: foram quatro jornadas com aqueles jovens militantes já veteranos, mas era um convite sobretudo para assessores técnicos que já estavam com a língua de fora com a burocratização dos movimentos sociais. Daí o meu interesse na segunda ou terceira geração do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania e o título do encontro: “Por Dentro, Por Fora”. Como eu tinha amigos na Fundação Rosa Luxemburgo, me encarreguei de encontrar a infraestrutura e o local. Levei todo mundo que encontrava, tinha até grupo de teatro. Redigi textos para iniciar a discussão, eram montagens, colagens e eu fazia lá a maquiagem. Lia e depois não abria mais o bico. Três dias eles falando e eu lá só ouvindo, como professor em seminário. Abril de 2012. Um ano depois, Junho.
NOTA DE RODAPÉ
É nesse momento que, aí sim, fica clara a clivagem entre a esquerda e o progressismo: os megaprojetos, os meganegócios, as megaintervenções, os megaeventos. O lulismo indo para o ralo e endoidando na sua apoteose mental do refrão “Nunca Antes na História Deste País”. A política reapareceu, e apareceu como sempre foi, luta, e como luta de encaminhamento de expectativas inegociáveis. A noção de engajamento muda então completamente de figura. Veja só, eu no meu caso sou apenas uma nota de rodapé. A minha única vantagem é ter consciência disso e ter registrado a nova clivagem no subtexto dos meus escritos. Fecho o meu livro, O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência, sobre junho de 2013. O livro já estava praticamente impresso e a editora disse: “Mas, Paulo, não vai dar para você encerrar o livro sem uma menção a Junho! Sobretudo porque você deu uma aula pública na frente de uma Prefeitura que por pouco não foi arrombada”. Eu fiz na correria, mandando brasa. É um balanço e uma escalada às avessas: nunca fomos tão engajados, nunca fomos tão participativos, nunca fomos tão governados. Não queremos mais ser governados assim. Nos ensaios anteriores ao livro, a personagem ou o tema “o intelectual” tinha desaparecido. Mas ele retorna de outra maneira. N’O novo tempo do mundo, o último texto no fundo é uma intervenção intelectual, porém puxada por uma palavra de ordem que não sabíamos mais interpretar: amanhã será maior.
IV
O INTELECTUAL NÃO EXISTE MAIS?
Pensando bem, é uma afirmação leviana. O conceito está estruturalmente alterado. É que hoje uma infraestrutura tecnológica projetou centenas de milhares de “intelectuais”, microensaístas atuando 24 horas por dia nas redes sociais. Isso é um passo a mais no naufrágio da “cultura dos experts”. O primeiro grande abalo foi doutrinário, a crítica de Foucault e Deleuze à geração anterior, sobretudo Sartre, que por sua vez remetia a Zola e aos iluministas. Depois é a vez dos intelectuais específicos serem enxotados. Aliás, com a pandemia eles voltaram com tudo, são os médicos, os epidemiologistas. E quem dá bola para eles a não ser os seus adeptos políticos? Então, quem de fato implodiu foram esses intelectuais específicos. Na verdade, sofreram uma metamorfose. Se seguirmos o argumento do Willian Davies (Nervous States: Democracy and the Decline of Reason), que aparece como uma voz diferente no debate da dita pós-verdade, o declínio da razão equivale ao declínio da expertise, cultura que se originou na Revolução científica do século 17 e no registro de dados do comércio transatlântico. A ideia de paz hobbesiana era fundamental nesse contexto. Para o governo político, eram necessários dados confiáveis que se obtinham com a evidência controlada como nos registros dos comerciantes. Apenas com essa paz civil se formavam os consensos, sem os quais não haveria governo estável. Quando nos aproximamos da situação de guerra civil quebra-se a confiança nos experts. É uma situação na qual não há mais argumento ou evidência que aparte a briga social permanente. É o que estamos vivendo. Assim a tecnologia de Gutenberg multiplicou o número de leitores (inicialmente da Bíblia). Disso resultou um século de guerras civis e religiosas. Da mesma forma, hoje, as mídias sociais multiplicaram o número de opiniões, independente da autoridade dos experts. Foi nesse sentido que falei que o intelectual foi para o espaço. O que dirá do intelectual tradicional ou do Nabuco abolicionista (que foi o nosso Zola do affaire Dreyfus)? Por outro lado, os intelectuais estão aí e na pior configuração. A teoria crítica mundial não cessa de crescer. Há para todos os gostos e identidades, e produzida em escala industrial. Com a pandemia então, estamos testemunhando uma espécie de delírio teórico permanente, na média de um jargão por mês. Mal posso imaginar por qual milagre se faz a conexão entre esta explosão de metacríticas disso e daquilo e a miríade de ativismos de toda sorte. Não por acaso foi inocentemente atropelado pela metástase do jargão desconstrucionista.
FÉ DE OFÍCIO
De 2014 para cá, por alguma razão, mais falei do que escrevi. Principalmente falei sem parar. Onde então foi se esconder o tema que interessa a vocês nesta conversa? Onde continua a ruminação dessa atividade crítica? Está nas lives! De 2014 para cá percorreu o Brasil, falando de ceca e meca. De abril de 2020 até a semana retrasada foram mais de 40 lives. Mas afinal o que isso tem a ver? O mundo pandêmico está coberto de lives. Porque, no fundo, é a coisa mais banal do mundo. Não é dizer “mudou de mídia”; eu me comporto como numa conferência normal, mas, querendo ou não, centupliquei a minha audiência cativa em sala de aula. Estando livre, estou às ordens, se estiver a meu alcance, falo conforme a encomenda, que por sorte é sempre o que interessa – o que está rolando no mundo, da pandemia e seus derivados, que são legião, à catástrofe bolsonarista. Como em sala de aula, faço questão de fornecer a bibliografia. Nada mais nada menos do que a fé de ofício da minha profissão, o ato docente, simples assim.
APENAS UM PROFESSOR
Parece uma ideia fixa: volta e meia preciso lembrar que sou apenas um professor, não peçam mais de mim. Não é falsa modéstia, pois até adotei uma teoria sobre a origem e a natureza dessa modéstia, mas na verdade o recado é este: “Olha, pessoal, eu tenho muitos defeitos, mas pelo menos uma coisa não perdi: nada mais entranhado num intelectual brasileiro que conhece ‘sua matéria’, o senso do ridículo. Eu sei que tenho um teto, não posso ultrapassá-lo”. Pode parecer subterfúgio, mas quando digo “sou apenas um professor” também é uma confissão: batemos nesse teto. No momento em que a Aufklärung entrou em parafuso, está desafiada, para dizer o mínimo; muita coisa tem que ser repensada. Mas tem outra coisa embutida: sou um professor, continuarei sendo professor e continuaria sendo, mesmo se o socialismo, na acepção enfática, revolucionária, do termo, um dia prevalecesse. Se vamos falar seriamente em revolução e socialismo, ela é violência política pura. Como eu estarei do seu lado, aconteça o que acontecer, quero ficar o mais longe possível do matadouro que virá, na contramão da carnificina atual. Não contem comigo como ideólogo do regime! Mas de novo e sempre, como um professor. Quero conversar com jovens estudantes sobre filosofia e literatura, sobre sociologia. O ato docente também é um ato civilizatório, seja lá o que isso queira dizer nos dias de hoje. Como reconheceu Adorno, a catástrofe já aconteceu, a nossa única função na face da Terra, como humanos que pensam, é adiar a sua repetição, o second strike, que cedo ou tarde virá. E só posso adiá-lo um pouquinho falando disso e daquilo como puder, na mídia que for. Ponto, acabou.
Sílvia Viana é socióloga e professora de Sociologia na FGV.
Bruno Carvalho é doutorando em Filosofia pela USP.
Fernando Vidal Filho é doutorando em Filosofia pela USP.