“Não faço mais filme no Brasil”
Marília Kodic
Pulando incansavelmente de um negócio para outro como “um saci”, em suas próprias palavras, Mauricio de Sousa sustenta números impressionantes: aos 75 anos de idade, com 50 de carreira, vende gibis na casa dos milhões a cada mês – só da Turma da Mônica Jovem, são 500 mil. Além disso, detem mais de 80% do mercado editorial infanto-juvenil do país.
O cartunista recebeu a CULT em seu estúdio na Lapa, Zona Oeste de São Paulo, para falar sobre alguns de seus novos projetos, entre eles o Chico Moço, sua “primeira revista verde”; a ideia de fazer uma publicação em que os personagens envelheçam, ano a ano; e a entrada de seu décimo e último filho, Marcelinho, como personagem dos gibis.
Além disso, conta sobre quando foi demitido, no início da carreira, ao fazer charges políticas; sobre seu xodó com o personagem Horácio, que não consegue passar aos roteiristas; e sobre suas críticas às leis do incentivo ao cinema nacional.
O Horácio é o único personagem que o senhor ainda desenha. Por quê?
Virou uma história de autor. Quando você está escrevendo, tem que se transformar no personagem, senão não sai direito. O Cebolinha é um menino, o Jotalhão um elefante, a Tina uma moça… Você tem que ser cada um deles.
O Horácio é um dinossauro, acho que mora na Pré-História, pode ser no futuro… Ele permite fabular mais, é muito livre, mais próximo do estilo do Will Eisner, do The Spirit. É liberdade, ousadia e criatividade que não consigo passar para os roteiristas. Eles têm outra vivência, outra filosofia. De vez em quando, também faço uma historinha de Natal, de Ano Novo, para puxar alguma coisa nova, diferente.
O senhor já disse ter virado mesas e jogado o telefone na parede ao ficar irritado. É uma pessoa muito nervosa?
Absolutamente! Eu não! Sou zen, zen, zen… nos últimos 20 anos. Antes eu era um pouquinho ‘enfezadinho’, conforme o problema. O que me deixava extremamente irritado, fora de mim – agora não, porque acho uma besteira ficar irritado, faz mal para a saúde – era serviço mal feito, perpetrado por pessoas que sabem fazer serviço bem feito.
Como é seu processo criativo – o senhor carrega um caderninho de ideias?
Nunca. Sento e sai. Se ficar buscando ideias, fico louco. Então, tenho que confiar na minha memória ou na minha sensação. Estou vivendo a vida. Quando sento, geralmente sai uma história baseada em alguma coisa que vi, conheci, senti.
Prefiro não pensar nisso enquanto acontece, mas depois. A inspiração sempre vem. Isso é uma coisa de que todo desenhista devia ter consciência. É um poço sem fundo, cheio de água: você vai buscar, buscar, buscar… e sempre tem.
Pode descrever seu local de trabalho?
De manhã eu trabalho em casa. Moro a 14 minutos daqui, numa casa no Alto de Pinheiros – procuro não perder tempo no trânsito. Trabalho num escritoriozinho comum, do lado de um jardim, passarinhos cantando, bem-te-vi, pica-pau, sabiá, um cachorrinho que fica lá de vez em quando.
Ao lado tem o escritório da Alice, minha mulher, que é diretora do estúdio. Então, quando tenho alguma dúvida, eu grito ao invés de usar o telefone (risos). Almoço com a família e depois venho para o estúdio. Aqui não tenho hora para sair.
Não pensa em parar?
Por que parar?
Para viajar, descansar?
Posso até sair um dia para descansar, mas a máquina não pode parar.
Quando foi a última vez que tirou férias?
Que férias? Às vezes eu viajo com a família, mas aproveito para ver um museu, uma feira de quadrinhos, qualquer coisa assim.
Já ouvi falar em dezenas de planos para o futuro próximo: parques da Mônica e do Cebolinha, seriados em 3D, série do Ronaldinho Gaúcho na Itália… Até que ponto o senhor supervisiona os projetos e que liberdade dá a quem os desenvolve?
Supervisiono tudo. Eu não tiro a liberdade, eu a acompanho. A pessoa tem que sentir que tem a liberdade de criar livremente e, depois, submeter ao crivo, que é a filosofia da empresa.
E pensa em deixar seu posto para os filhos?
Já estou me preparando para isso, temos um projeto de sucessão que prevê várias ações na empresa para que eu possa ir me liberando. Mas, como estou ainda com muito gás pela frente, vou me liberando de um cargo e inventando outro.
Quero continuar criando e desafiando o estúdio a realizar minhas ideias e sonhos enquanto é tempo. Sou um saci. Amarro o sapato dos outros, amarro a crina do cavalo, desfaço alguma coisa e, principalmente, desmancho a zona de conforto. Quando o pessoal fala “bem, agora está tudo planejado”, eu chego lá e invento mais uma revista na história.
Falando em revista nova, o senhor disse recentemente que os personagens da Turma da Mônica vão começar a envelhecer, ano a ano. Isso irá mesmo acontecer?
Irão evoluir. Envelhecer é palavra feia, chata, desagradável (risos). Irão fazer aniversário cronologicamente. Tem prós, contras, tem até advogado do diabo aqui dentro. A maioria está com medo do projeto. Vamos tentar fazer com que o grande bloco de jovens que está lendo a Turma da Mônica Jovem e que iria largá-la ao entrar na idade adulta continue acompanhando-a.
E os novos leitores?
Eles continuam. É um projeto à parte, estamos inventando um universo paralelo. É inédito isso. Vou falar da vida dos personagens, dos seus conflitos, e o entorno é o que estiver acontecendo no mundo. É uma história jornalística.
Isso significa que, eventualmente, eles irão morrer?
Espero que não. O Franjinha está aí inventando coisas (risos).
O senhor tem medo da reação dos fãs puristas?
Nossa, quando criei a Turma da Mônica Jovem, quase me bateram. “Mataram a minha infância, você é cruel, carrasco, nunca mais compro a sua revista”. Mas as tiragens são fabulosas.
Como decide o teor dos temas tratados nas revistas?
Tento usar os temas de forma que eu possa falar como se estivesse falando com meus filhos, quando tinham 10 anos, na mesa do jantar. Quando criei a Turma Jovem, eu queria chutar um pouco mais os temas para o alto, mexer um pouquinho com sexo e drogas para dar informações. Quando vi, a criançada estava lendo e comprando a versão Jovem também, então, pensei, não vai dar para fazer isso, vou ter que suavizar tudo.
Talvez nesta versão adulta?
Sem dúvida a criançada vai ler também. Sempre terei que escrever no meio da mesa de jantar da família. Ali é o termômetro.
Em 2009, o senhor criou o primeiro personagem gay, o Caio, no gibi da Tina…
Não era. O meu roteirista fez a história, acho que propositalmente, para poder haver a dupla interpretação, e provocou muita celeuma desagradável, meio pesada no caso. Senti que não poderia haver meio termo nessa situação, essa sociedade ainda não está preparada para certas aberturas.
Então, vamos aguardar outros tempos.
O senhor acredita mesmo que a sociedade ainda não está pronta?
Falar que não está pronta ainda permite uma interpretação de que eu vou esperar que fique. Não, vou seguir o que acontecer. Nós não estamos torcendo para nada, quero viver a vida do público, das crianças de hoje em dia.
Tento evitar, de toda maneira, desafios ou propostas que permitam que o leitor imagine que estamos forçando a situação. Quando muito, colocamos sugestões sobre comportamento, ética, bons costumes.
Mas quanto a posições sociais, quero evitar sempre. Não quero entrar nessa briga, nessas experimentações. Eu posso ter a minha opinião particular. Mas eu não ponho no gibi. E nem na entrevista.
Há quem diga que o senhor faz apologia à violência nos quadrinhos, mais notavelmente em relação à agressividade da Mônica. Como vê essa questão?
Quem fala isso no mínimo não foi criança, nunca brigou, nunca fez uma gozação na escola. Isso faz parte da vida. E o coelho é macio, não tem importância.
Para o pessoal que acha que a Mônica é muito brava, o Cascão não toma banho, a Magali come demais, e o Cebolinha fala errado, tem a Turma Jovem que mostra que, em poucos anos, a Mônica ficou mais suave, o Cebolinha consertou a fala, o Cascão está tomando banho, a Magali está corrigindo o cardápio… Tudo tem remédio.
O senhor procura dar um sentido político às histórias?
Em tira de jornal dá para fazer, na revista não. No começo da carreira eu fiz. Desenhei uma caricatura do governador do Estado, na época o Jânio Quadros, quando era repórter da Folha da Manhã.
Ele viu o desenho, investigou quem havia feito e proibiu a entrada de todos os repórteres do jornal em todas as repartições públicas do Estado durante um mês. Totalmente ditatorial, né?
Numa outra vez, desenhei um político lutando com um lutador. Os dois queriam me bater. E várias vezes defendi a nacionalização das histórias em quadrinhos. Não só a Folha me despediu como fiquei numa lista negra sem poder trabalhar em nenhum lugar.
Naquele tempo não podia fazer isso, era coisa de comunista.
Como avalia a atuação da Ministra da Cultura, Ana de Hollanda?
Ela está começando ainda, né. Faz tempo. Deve estar encontrando muita dificuldade. Acho que nos próximos meses vou ter uma reunião com uma pessoa do Ministério da Cultura, trocar umas ideias para ver como a gente pode colaborar com eles.
Tem alguma crítica específica ao Ministério da Cultura?
Não exatamente. Eu não gostei, em outros tempos, quando estavam falando em mudanças na lei dos direitos autorais, eles estavam indo para um caminho perigoso para quem, como eu, vive disso. Aqui ou ali, sempre há alguma ameaça ao nosso trabalho.
Que tipo de ameaça?
Uma que persiste é a do cinema. É muito caro, então você tem que fazer parceria com uma multinacional que financia o filme – com dinheiro do imposto brasileiro – que fica dona dele, e você nunca mais o vê. Enquanto houver essa realidade, não faço mais filme no Brasil.
Quando lançamos o primeiro Cine Gibi, ele estava numa sala, e Homem-Aranha estava em sete. O filme dele passava o dia inteiro, e o nosso às 10h da manhã e no começo da tarde. Depois de pouco tempo, tiraram de cartaz.
Somos esmagados pelos estrangeiros, como acontecia com as histórias em quadrinhos quando comecei. As revistas da Disney vendiam milhões e a gente chegava com uma coisinha de nada.
Mudando um pouco de assunto, os seus dez filhos já viraram personagens?
Falta o último! O Marcelinho deve entrar logo, logo. Há quatro, cinco anos, ele queria um personagem, e eu desenhei. A característica é que ele é irremediavelmente econômico. Ele tem 13 anos agora, mas já veio assim, politicamente correto. É cuidadoso, fecha a torneira, apaga a luz, dobra a roupa, guarda os brinquedos, faz tudo certinho. Não quer que compre nada enquanto não estiver bem estragadinho, não me deixa entrar em loja de grife, aplica dinheiro desde os dez anos.
Então disse “vou fazer ‘Marcelinho, o certinho’”. Ele falou “não concordo, vou pagar um mico danado”. Ficamos brigando esses anos todos e, recentemente, ele concordou se formos pelo viés da economia.
Ele irá tumultuar tudo, brigar com todo mundo, apanhar bastante. Apesar de brincar com isso, trata de um assunto que está na hora do dia.
Eles trabalham com o senhor?
Seis dos dez trabalham comigo, cada um numa área. Nunca obriguei ninguém a trabalhar na empresa, eles vêm porque gostam e funciona bem.
De vez em quando aparecem celebridades nos quadrinhos. O senhor as avisa antes?
Às vezes sim, às vezes não. Normalmente, quando não falo, ponho nome trocado, mas dá para saber quem é. Com o Maradona, fiz um projeto, mas antes de lançar, ele teve alguns problemas de comportamento e eu preferi cortar.
Com o Ronaldo, fiz o projeto, mas ele descobriu que tinha uma cláusula com o Real Madrid, e aí não dava. Agora dá. Vou falar com ele.
Há algum personagem que gostaria de criar e ainda não o fez?
Há personagens na gaveta sobre os quais estou pesquisando um pouco mais. Tem uma família baiana de negros que vai mudar para o bairro do Limoeiro e levar toda a cultura afro-brasileira.
E isso me deu outra ideia: fazer uma rua com diversas famílias de diversos locais do Brasil. Ainda é um projeto distante, mas nós vamos fazer isso, e vai ter uma boa carga educacional.
A Turma da Mônica Jovem vai ser seguida pelo Chico Moço, que é outra linha. Começará a ser produzido no mês que vem. Estou pesquisando muito porque é uma história que vai ter um monte de agronegócio, ecologia, cuidados com a floresta… vai ser a nossa primeira revista verde.
Também quero fazer cada vez mais livros e mexer na educação. Tudo deve ter esse viés a partir de agora. Educação é a cesta básica necessária para o mundo todo agora.
Quão importante é o retorno financeiro para o senhor?
Como é um pacotão de ações, nunca sei o que está rendendo mais ou menos. O pacote tem que render o suficiente para pagar o salário e sobrar alguma coisa para investir no mês seguinte. Tem dado certo nos últimos 50 anos.
Qual o papel do merchandising nisso?
O merchandising é responsável por 70% do nosso faturamento. É super importante para podermos continuar não só existindo, mas para crescer, fazer cinema, exportar.
Não tenho sócios, trabalhamos com os nossos próprios recursos, não temos injeções de capital. Não usar verbas públicas preserva a nossa liberdade.
A listinha de Mauricio de Sousa
Autores preferidos: “Érico Veríssimo, Jorge Amado e uns livros gozados aí sobre a verdadeira história do Brasil que nunca foi contada, do gaúcho Eduardo Bueno, o Peninha. E Monteiro Lobato, que me marcou mais quando jovenzinho. Um dos livros que cravou na minha cabeça foi Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez. Cantores preferidos: Jorge Ben Jor e Tim Maia. Próximo filme a que vai assistir: Estou louco para assistir ao brasileiro Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo, do Hugo Carvana; parece ter bastante ritmo, e gosto de filmes assim. |
(2) Comentários
Deixe o seu comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
Interessante que no caso do personagem gay ele afirma que não quer se envolver com questões sociais, e faz de sua alienação social a bandeira da neutralidade das publicações, mas não exita em afirmar que “educação é a cesta básica necessária para o mundo todo agora.” ao avaliar a publicão “verde”, a inserção de uma família de negros para difundir a cultura afro-brasileira, ou outras propostas educativas da revista.
Em um momento afirma que não quer se envolver com questões da ordem pública, em outra parece um militante de medidas educativas.
Gostei da entrevista. Em relação ao cinema, acredito que temos muito o que aprender com o Irã. Eles tem um conceito diferente de Hollywood, por exemplo. Acredito que o objetivo principal dos cineastas iranianos não é o lucro, e sim a exposição de um bom conteúdo. Gostaria de ver o Brasil olhando mais pra o cinema iraniano do que pra o hollywoodiano.