Feliz vinte vinte

Feliz vinte vinte
(Foto: Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2020 é “renascimento”.


Para reflexões sobre renascimento, uso a mesma estratégia de antes: iniciar a digitação a esmo e ver no que dá. Quase sempre as ideias, mensagens e angústias ali estão, precisando se manifestar aleatoriamente, tal como é a própria razão da existência. Não fossem o acaso, o improvável, o imponderável e a probabilidade não existiríamos, não nasceríamos, e, portanto, não renasceríamos.

O último mês do ano sempre foi angustiante pela condensação de atividades em tempo menor, a necessidade de finalizar tudo no espaço de cerca de vinte e poucos dias, pois os sagrados a comemorar não podem demandar atividades. O ano acaba, mas a vida, ainda que recheada de morte por todos os lados, continuará, indissociável que é de calendários fictícios, apesar de serem baseados em alguma ordem encontrada no caos cósmico.

Odiava dezembros antes da pandemia, aumentei a ojeriza a este mês quando voltamos a morrer à taxa de mil por dia, contada uma só das doenças retiradas da floresta degradada. Nós brasileiros, porque no mundo morre-se em igual proporção, mas com distinta consideração. A política oficial da morte demandada é a única que impera e faz sofrer. Renascer morrendo?

Há que se renascer, dizem os otimistas; ‘renasça e faça’ combinará no lema o poeta que fecha os olhos para a realidade, abrindo-os apenas para seu conhecimento gramatical e batimentos cardíacos. Ele, o poeta, ao menos vive. O coração bate por inércia, apanha por condição e sofre por convicção.

Não renascerei por não ter nascido para esta morte demandada. Renascer para um mundo em que o novo anormal triunfa é a dor dupla do parto que parte da cor nebulosa para a realidade nefasta. Não falarei impropérios, mas doces palavras não mudarão o amargo da existência já nascida indevidamente. A probabilidade da sobrevivência impõe não cometer o mesmo erro duas vezes. Aprendamos e sobrevivamos em inexistência póstuma.

Feito o realismo de um Orwell finalmente traduzido como a rebelião que retratou, não a revolução imposta. Quisera reescrever o DNA para remover a lembrança de um período único de translação do planeta ao redor do sol e, após a quinta-feira, 31 de dezembro, viesse a quarta-feira, primeiro de janeiro de 2020. Eis o único renascimento possível.

Adilson Roberto Gonçalves é pesquisador
da Unesp, membro do Instituto Histórico,
Geográfico e Genealógico de Campinas e
da Academia Campineira de Letras e Artes,
autor de “Transformações na terra das goiabeiras”

 

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