Fantasia de Damares
(Foto: Marcelo Casal Jr/AB)
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Essa semana o Carnaval começa oficialmente. Para alguns já começou. O primeiro carnaval (quase) pós-Covid promete. Você já escolheu sua fantasia? Eu vou vestir a minha fantasia de Damares.
Talvez você esteja pensando que não é lá uma fantasia muito estimulante. Eu a acho divertidíssima! Não a Damares, evidentemente, mas a minha fantasia de Damares. Me regozijo imaginando minha Damares pulando nos blocos de Pinheiros, camisa rosa bebê fechada até o pescoço, peruca com cabelos escorridos partidos ao meio segurando um ramo de goiabeira, olhos vidrados procurando Jesus, entre odaliscas atrevidas, sátiros de dorso nu, demôni@s de chifre vermelho, travestidos, camisas do Corinthians e cheiro de urina.
O crítico literário Mikhail Bakhtin, em sua prodigiosa obra A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais, explicita a potência do realismo grotesco na grande Festa popular que era o longo carnaval europeu. Isso poucos anos depois da chegada dos portugueses ao Brasil.
Na Festa (com F maiúsculo) popular encenada pelo carnaval celebrava-se o tempo alegre que rege nossa existência e suas mutações durante o curto período de vida de que dispomos. O estilo grotesco era predominante, com a quebra das fronteiras estabelecidas entre os reinos humano, animal e vegetal, entre o dentro e o fora do corpo – representado com seus orifícios e excrementos –, entre o belo e o feio, o sério e o cômico, o sublime e o blasfemo. No carnaval europeu era consentido o asno adentrar a igreja vestido de padre parodiando a missa. E as mulheres de idade saíam às ruas com um travesseiro no ventre encenando a figura suprema do realismo grotesco: a velha grávida que ri. São os chamados “espantalhos cômicos” que tinham por função exorcizar o medo das autoridades, da doença, da loucura, do sexo e da morte.
O grotesco tinha como princípios o rebaixamento e a percepção carnavalesca do mundo. Rebaixar é tanto depreciar como aproximar da terra, enterrar para promover a regeneração, a emergência do novo. Dessa maneira, rebaixar as figuras de autoridade da Igreja e do Estado monárquico implicava resistir à seriedade unilateral da vida oficial, recordando o sentido maior da existência.
Já a percepção carnavalesca do mundo adotava o riso festivo, não individual e universal, para indicar que todos podem rir, e todos, sem exceção, podem ser alvos do riso. A linguagem blasfema também era presente na Festa popular e, por meio dela, exercitava-se a ambivalência do realismo grotesco. No carnaval medieval e renascentista o riso é “alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente”, escreve Bakhtin.
Refletindo sobre as manifestações do grotesco em nossos dias, aprendi com a professora Ana Paula Brancaleoni, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que as travestis, apesar de comporem a população mais vulnerável de nossa sociedade, têm sua sociabilidade caracterizada pela circulação do humor. Em alguns recantos do país, elas dispõem até de um dialeto, o pajubá, oriundo do Iorubá-nagô dos escravos mesclado com o português, para rirem juntas em segredo. As travestis riem da hipocrisia do burguês à beira de um ataque de nervos que as procura para experimentar um momento de prazer, riem da fronteira artificiosa estabelecida entre os gêneros masculino e feminino, riem dos casamentos aprisionadores e, sobretudo, riem de si mesmas. Ser travesti dá um enorme trabalho de invenção cotidiana do feminino, como demonstrou o antropólogo Helio Silva. Depilação, unhas, cabelos, silicones industriais injetados rusticamente, roupas, maquiagem, hormônios, doenças. A maioria tenta ganhar a vida como profissional do sexo. E encontra a pobreza, a violência e por vezes a morte.
O travestismo que exerço com minha fantasia de Damares é mais pudico. Talvez a pudicícia seja um vício acadêmico. Mas amo o seu paradoxo. Travestir-se de Damares é travestir-se da representante maior do antitravestismo brasileiro, indicando que a máxima “menino veste azul e menina veste rosa” é, ela mesma, nada mais que uma codificação a serviço da dominação masculina que rege, há séculos, nossa vida social. Aliás, tanta atenção à sexualidade e à moda infantil não impediu que Damares assistisse passiva e desavergonhada ao genocídio de nossos curumins quando foi “Ministra da mulher, da família e dos direitos humanos”.
A fantasia de Damares escancara, assim, de modo cômico, o caráter performativo (não natural e historicamente constituído) do binarismo de gênero apontado por Judith Butler. Em explícita megalomania pantagruélica, imagino minha personagem travesti Damares subvertendo a ordem imposta aos brasileiros pela ambição teocrática-militar, e conjurando a grande risada libertadora que anda tímida em nosso país do carnaval.
O carnaval é a exibição socialmente consentida da loucura transgressora que constitui o universo fantástico que habita, oculto a maior parte do tempo, o psiquismo de todos nós. A palavra folia (folie é loucura, em francês) vem daí. Acontece que nossas fantasias loucas são também a matriz da potência desejante e da vontade de viver que nos permite levantar da cama a cada dia para enfrentar as exigências do mundo profano do trabalho. É a nossa maluquice beleza, parafraseando Raul Seixas. Ou, segundo o psicanalista Adam Phillips, a parte da nossa subjetividade louca, para ser normal.
Um dos muitos problemas do Brasil de hoje é a loucura triste daqueles que se consideram guardiões da moral e dos bons costumes. A paranoia dos que detêm a certeza de que são os normais, do que é correto ou errado. Dos sacerdotes, professores, militares, policiais, empresários, juízes ou políticos que se lançam em cruzadas aniquiladoras contra os que pensam, sentem e agem diferentemente. É preciso carnavalizar seu mundo bidimensional, furar suas microbolhas existenciais e expandir nossos sonhos de futuro. Do contrário, concretizaremos a máxima winnicottiana: seremos pobres se apenas sãos.
Boa folia. A partir da próxima coluna tentarei evitar a zombaria e me empenharei em buscar uma linguagem que possa sensibilizar os que não pensam como eu. Mas dessa vez não deu. Muito desejo de viver oprimido pelo palavreado tóxico oficial dos últimos quatro anos. Explode coração!
Daniel Kupermann é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.