Explosões ambíguas
“O terrorismo sempre teve diferentes significados, dependendo do contexto”, afirma o pesquisador britânico Nick Fielding, co-autor de Masterminds of terror
Rogerio Wassermann
Foi-se o tempo dos heróis internacionais das lutas pela independência e pela libertação nacional, da era na qual o uso da violência com objetivos políticos era legitimado de acordo com seus argumentos. O aparecimento, nas últimas décadas, do terrorismo extremista islâmico e principalmente das ações conduzidas por meio de ataques suicidas tornou a legitimação de tais atos quase impossível e acabou com o pouco de apoio popular que ainda poderia haver às organizações terroristas. A avaliação é de um dos maiores conhecedores mundiais do assunto. Repórter especial do jornal londrino The Sunday Times e especializado em questões de segurança internacional, o pesquisador britânico Nick Fileding é co-autor de Masterminds of terror, lançado em 2003 no Reio Unido pela Editora Mainstream. O livro contém as primeiras e únicas entrevistas concedidas até hoje por Khalid Shaik Mohammed e Ramzi Binalshibh, dois altos membros da rede terrorista Al Qaeda considerados mentores dos ataques de 11 de setembro de 2001 aos EUA.
Para Fielding, o caos existente hoje no Iraque pós-ocupação é um dos exemplos claros desse duplo sentido da violência política. “Pode-se argumentar que algumas das pessoas lutando no Iraque são nacionalistas, lutando pela libertação de seu país da ocupação de exércitos estrangeiros. Na lei internacional, isso é legítimo”, diz Fielding. “Porém, há outras pessoas lutando contra o mesmo inimigo e cujo objetivo não é somente libertar o Iraque, mas também conduzir uma guerra contra os xiitas e contra os curdos, desmembrar o Estado do Iraque, uni-lo a outros Estados islâmicos vizinhos e assim por diante. Então, fica muito difícil esclarecer o que é legítimo e o que não é”, afirma.
Em meio da correria profissional provocada pelos atentados dos dias 7 e 21 de julho na capital britânica, Fielding recebeu a reportagem da CULT em Londres para a seguinte entrevista.
CULT – No passado, muitas ações terroristas eram consideradas legítimas por parte da população. Podemos citar, por exemplo, os grupos terroristas judaicos que lutavam contra o mandato britânico na Palestina e pela independência do Estado de Israel. Essa visão ainda é válida hoje?
Nick Fielding – O terrorismo sempre teve diferentes significados, dependendo do contextos. Os grupos mais antigos de terroristas eram os “hassassins”, que existiam no que hoje é o norte do Irã, entre os séculos 10 e 12. Eram indivíduos contratados especificamente para matar cristãos durante as Cruzadas e estavam preparados para morrer em sua ação. Esse é um tipo de terrorismo. Depois disso, não houve outros exemplos ao longo da História por muito tempo. Isso só volta no século 19 como movimento significativo. Você tem o exemplo da Rússia, com pessoas tentando assassinar o czar, incluindo o irmão de Lenin. Outra vez, tentavam desestabilizar a política matando ou ferindo pessoas de alto status. Eles foram muito criticados pelos bolcheviques e pelo movimento socialista russo e houve um grande debate sobre se o terrorismo deveria ser um método usado para mudança de regime. E foi rejeitado de fato pela maioria, embora as ações terroristas tenham continuado a acontecer mesmo após os bolcheviques tomarem o poder.
Depois disso, houve muitas ações consideradas terroristas ligadas a lutas por libertação nacional. Eu diria que há um argumento que diz que, se você está lutando pela libertação de seu país, qualquer tática para se livrar de seu opressor é legítima. Essa é possivelmente a posição usada pelo Irgun e por outros grupos judaicos na luta pela formação de Israel. Explodiram uma bomba no Hotel King David, em Jerusalém, matando 40 ou 50 oficiais britânicos. Seqüestraram soldados britânicos e os executaram.
CULT – E dois líderes desses grupos (Menachem Begin e Yitzhak Shamir) tornaram-se primeiros-ministros depois…
N.F. – Claro. O mundo está cheio de presidentes e primeiros-ministros que antes foram líderes terroristas. Robert Mugabe, Nelson Mandela, líderes de Moçambique e Angola, foram todos líderes de movimentos de libertação nacional em algum momento.
Mas a natureza dos conflitos mudou muitas vezes no século 20. O que é significativo sobre os movimentos que temos agora é que eles usam as mesmas táticas que os movimentos de libertação nacional, mas são transnacionais. Então eles não estão defendendo a libertação de um território existente. Ao menos não somente isso. Estão tentando também estabelecer uma ideologia específica. Dentro disso há ainda as noções de território. Por exemplo, algumas organizações islâmicas dizem lutar pelo estabelecimento de califados, Estados islâmicos puros. Então estão buscando a libertação de territórios que foram tomados originalmente dos muçulmanos, como as Filipinas, ou a Andaluzia, na Espanha.
Temos a motivação de Osama Bin Laden em relação às terras dos antigos califados, que ele acredita estarem ocupadas pelas forças americanas. Então, suas ações estão ligadas à idéia de libertação nacional, mas são mais importantes por sua idéia de estabelecer algum tipo de Estado islâmico.
CULT – Ainda existe hoje uma percepção diferenciada da opinião pública em relação a esses dois lados da questão do terrorismo?
N.F. – Isso ficou muito mais complicado. Acho que no mundo em geral há muito pouco apoio para essas organizações. Eles têm um apoio coerente dentro das organizações, mas externamente há muito pouca aprovação para esse tipo de idéia.
CULT – O uso do termo terrorismo tem hoje um viés político?
N.F. – Tem, porque eu diria que a questão significativa é que qualquer ação militar contra um poder estabelecido é hoje considerado terrorismo. E isso significa, or exemplo, que lutas genuínas de libertação nacional são também chamadas hoje de terrorismo.
Isso traz um dilema em relação a casos como o do Iraque, por exemplo. Certamente, alguém pode argumentar que algumas das pessoas lutando no Iraque são nacionalistas, lutando pela libertação de seu país da ocupação de exércitos estrangeiros. Na lei internacional, isso é legítimo.
Porém, há outras pessoas lutando contra o mesmo inimigo cujo objetivo não é somente libertar o Iraque, mas também conduzir uma guerra contra os xiitas e contra os curdos, desmembrar o Estado do Iraque, uni-lo a outros Estados islâmicos vizinhos e assim por diante. Então, fica muito difícil esclarecer o que é legítimo e o que não é legítimo. De fato, a lei internacional não consegue lidar com isso.
Geralmente, movimentos de libertação nacional não promoviam ataques a contra alvos civis, apesar de muitas vezes eles terem sido atingidos. O Exército Republicano Irlandês (IRA), por exemplo, matou 28 pessoas em Birmingham, em 1974, mas depois pediu desculpas pelo ataque, dizendo que o aviso pela bomba não chegou a tempo.
Hoje simplesmente não há avisos. São ataques especificamente planejados para matar civis. Por isso, é muito difícil justificar essas ações, exceto por meio de algumas idéias que subvertem leituras particulares do Islã.
CULT – Que argumentos são esses?
N.F. – Os homens-bomba têm a intenção de morrer e é seu desejo profundo morrer. Porque foram convencidos pela religião de que ao morrer trarão benefícios não somente para si mesmos, mas também para toda sua família. Eles vão diretamente para o céu, recebem 72 virgens e podem fazer representações em nome de sua família inteira diante de Deus. Então, todos os familiares também vão para o céu. Se os familiares acreditaram nos mesmos argumentos, ficarão felizes de que seu filho, irmão ou pai morreu nessas circunstâncias. Fazem festas para celebrar. Então, como argumentar contra esse tipo de ideologia? É muito difícil.
CULT – Como as autoridades vão lidar com as novas ameaças do terrorismo?
N.F. – Hoje o terrorismo é um inimigo muito mais perigoso que no passado. O IRA, por exemplo, era formado por irlandeses ou pessoas de origem irlandesa. Em outras palavras, era possível se infiltrar nessas organizações. Eles falavam inglês. Tinham uma origem bem compreendida e estudada e estavam circunscritos a um território pequeno e bem definido. O caso do terrorismo islâmico é totalmente diferente. Há uma grande diversidade entre os ativistas em potencial, eles não estão limitados a um determinado lugar. Suas ações são basicamente contra civis, que são talvez o alvo mais fácil. Então, a verdade é que é quase impossível lidar com homens-bomba. Não podem ser detectados, mesmo com milhares de policiais à paisana por todas as partes.
CULT – Do ponto de vista de seus autores, o terrorismo funciona?
N.F. – Certamente funcionou se pensarmos no exemplo do IRA. Quando começaram a promover ações contra edifícios na City e em Canary Wharf, no centro financeiro de Londres, o governo britânico decidiu, após 25 anos, começar a negociar. Mas isso por causa do grande custo que as ações causavam. Os danos provocados por essas bombas custavam bilhões de libras. Eles precisavam negociar.
Apesar do grande número de vítimas que os últimos atentados em Londres causaram, os prejuízos financeiros são muito menores. Não acho que o governo negociaria nessas condições. Osama bin Laden ofereceu uma trégua após os atentados de Madri. Disse que se os países que participam da guerra no Iraque e no Afeganistão aceitassem retirar suas tropas de lá, ele controlaria seu pessoal. Ele estava oferecendo negociação, mas ninguém aceitou sua oferta. Mas e se eles fosse capazes de promover um grande número de ataques muito sofisticados, talvez explodindo uma bomba suja no centro de Londres, fazendo com que o centro da cidade ficasse inutilizado por 50 anos? Será que o governo negociaria? Talvez sim, nada é impossível. Os governos sempre dizem que se recusam a negociar com terroristas e muitas vezes fazem isso. Mas depende do nível de prejuízo que pode ser infligido sobre a sociedade.
De qualquer maneira, estamos falando de uma minoria de pessoas envolvidas com essas ações. Eles não têm apoio popular. O IRA, ao contrário, tinha apoio. Todo mundo nas áreas católicas da Irlanda apoiava o IRA. Era impossível quebrá-los. Acho que ainda existe muito otimismo atualmente sobre a capacidade de se quebrar esses novos grupos. Por isso, acho que as chances de negociação hoje são muito pequenas.
CULT – Há casos, como os de grupos radicais de defesa dos animais que atacam cientistas envolvidos com testes em animais, em que os alvos não são Estados ou autoridades, mas grupos sociais ou instituições. Qual a diferença conceitual entre esses grupos e os que atacaram Londres, por exemplo?
N.F. – Essa é uma área muito problemática. Eu falei com muita gente que recebeu ameaças dos grupos de defesa dos animais e não há dúvida de que eles ficaram aterrorizados, que suas vidas e suas famílias foram terrivelmente afetadas por esses incidentes. É incrível, na verdade, como tão pouca gente foi morta nesse tipo de ataque. Porque eles acontecem semanalmente no Reio Unido. Muitos deles envolvem ataques com bombas incendiárias, destruição de veículos. Não somente ataques físicos, mas também ataques mentais, poderíamos dizer.
As pessoas que promovem esses ataques o fazem com base no argumento de que os animais também têm direitos. precisam ter uma abordagem filosófica para a questão e a resolvem dizendo que, se as pessoas atacam esses direitos do animais, eles têm direito de atacar essas pessoas. Acho muito difícil apoiar isso.
Apoio em geral a idéia de que não deveríamos ter crueldade contra os animais e acho que a maioria das pessoas também. Mas não dá para apoiar as pessoas dispostas a ações muito violentas para pressionar por esses direitos. No fim, você precisa julgar essas pessoas pelas normas comuns e pela legalidade de sua operação. A maioria de suas ações é ilegal e eles podem ser julgados por elas.
CULT – Como o terrorismo vai evoluir no futuro? Grupos como os movimentos antiglobalização podem representar uma ameaça semelhante às autoridades?
N.F. – Alguns desses grupos já se tornaram ameaças. Na Escócia, durante o último encontro com o G-8, havia, em meio das passeatas, um grande número de pessoas com máscaras negras, dispostas a brigar com a polícia. Há vários elementos importantes sobre esses grupos. Eles são muito pequenos, desorganizados e ainda não são militaristas. Não têm armas, exceto coquetéis molotov. Mas acho que é possível que grupos como esses ou os de defesa dos animais evoluam nessa direção. A Frente de Libertação dos Animais (ALF) já é uma organização muito séria. Eles podem evoluir para tirar ou ameaçar a vida das pessoas.
Rogerio Wassermann
jornalista, mestrando em Estudos Latinos-Americanos na Universidade de Londres