Eu, robô

Eu, robô

Roberto de Sousa Causo

Publicada originalmente em 1936, A Guerra das Salamandras (Vàlka s Mloky) é uma obra de gênio, que captura muito do clima social e político do período do entreguerras. Seu autor, o tcheco Karel Capek (1890-1938), é famoso por ter criado a palavra “robô” na peça R.U.R., de 1920, encenada pela primeira vez no Brasil em 2010, com direção de Leonel Moura.

Os robôs de Capek, porém, são seres produzidos artificialmente e dotados de componentes orgânicos, conceito que a ficção científica firmaria mais tarde como “androide”. “Robô” veio do neologismo tcheco “robota”, sugerido a Karel por seu irmão Josef, e significa “trabalhador em regime de servidão”. Os androides da empresa norte-americana que os produzem são símbolos da exploração do trabalho, e a peça termina com uma destrutiva e malfadada revolta dos seres artificiais.

Capek retornaria repetidamente aos assuntos do trabalho como mercadoria e da revolta popular: a peça Že Života Hmyzu (1923) usa insetos para satirizar a elite e a burguesia. Claro, A Guerra das Salamandras emprega esses anfíbios em função similar. Mas Capek também sondava as fantasias de abundância da sociedade de consumo. O romance A Fábrica de Absoluto (1922) trata de um dispositivo nuclear que supre as necessidades de energia barata, revelando no processo “o absoluto”, essência divina que tudo permeia e cuja utilização religiosa, militar e comercial leva a uma guerra mundial.

A Guerra das Salamandras, primeiro publicada aqui pela Brasiliense em 1988 e que agora ganha nova tradução, abre com a descoberta de uma espécie de salamandra inteligente pelo capitão Van Toch, em uma ilha de Sumatra.

Esse mercador tcheco tem bons sentimentos dirigidos às criaturas, fornecendo-lhes meios de defesa contra os tubarões e encontrando locais seguros de desova, em troca de sua habilidade para o trabalho submarino. Mas acaba deixando-as sob o controle de capitalistas que, liderados pelo tcheco G. H. Bondy, globalizam seu emprego apoiados em sua altíssima taxa de fertilidade.

Inteligentes, solidárias e com aptidão para as línguas e a engenharia, as salamandras são escravizadas e abusadas, mas, assim como os androides de R.U.R., elas têm seus próprios planos.

O enredo não segue um único protagonista. As situações alternam-se, pintando um quadro multifacetado da interpenetração das salamandras e da humanidade, o que o escritor brasileiro de ficção científica Ivan Carlos Regina chamou de “narrativa pontilhista”. Agrega recursos de “montagem”, como truques de artes gráficas e ilustrações, colagem de relatórios científicos e atas empresariais.

A certa altura, o autor decide que tratará o livro como um estudo da Guerra das Salamandras, escrito muito no futuro, e não faltam instâncias em que o narrador se pronuncia. O recurso metaficcional culmina com o autor discutindo consigo mesmo no capítulo final.

Esse romance e a obra de Capek são marcados pelo burlesco, no tratamento leve de temas sérios como a crueldade humana, a exploração do homem pelo homem e sua incapacidade de atribuir humanidade plena ao outro.

Por trás do cômico e do absurdo, há um forte sentimento trágico, além da mente erudita de um filósofo e crítico incisivo de sua época. Isso leva sua ficção científica para muito além dos esquemas satíricos usuais e do desejo de pontificar, muito comuns, por exemplo, na ficção científica brasileira.

O professor emérito da Universidade de Oxford John Carey expôs, em Os Intelectuais e as Massas (1992), o temor aristocrático da democratização da cultura e da atividade política em um contexto de explosão demográfica, no período entre 1880 e 1939. Muitos escritores e intelectuais europeus de peso expressaram esse temor, ansiando por líderes fortes e fantasiando sobre a guerra total.

Apesar de ferino e implacável satirista, Capek não exibe esse desdém aristocrático pelas “massas”. Em vida, foi um democrata que se pronunciou contrário ao comunismo e que escreveu peças antinazistas, colocando-se na mira da Gestapo.

Em A Guerra das Salamandras, põe no mesmo saco capitalismo e comunismo, colonialismo e fascismo. “Esses bichos só servem para subsidiar alguma utopia”, diz o capitalista Bondy a respeito das salamandras (as massas). Seja ela a utopia do livre mercado, do coletivismo, da sujeição das “raças inferiores” ou do Terceiro Reich.

Daí as reflexões de Capek sobre explosão demográfica, controle de mercados e revolta popular.

Mais do que outros intelectuais da primeira metade do século 20, ele parece ter entendido que essas utopias são, na era da superpopulação, modos de aproveitamento das “massas” de mão de obra barata que, ele intuiu, formam o moto-perpétuo que faz “avançar” as nações. Mesmo que o avanço seja na direção do abismo.

Neste momento de globalização dos mercados, num mundo de 7 bilhões de habitantes em que a exploração da mão de obra barata desconhece fronteiras e a China ascende às primeiras posições no ranking das economias nas costas de centenas de milhões de trabalhadores desqualificados, A Guerra das Salamandras ainda constitui um alerta sem paralelo na literatura.

Roberto de Sousa Causo é escritor e autor de Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil – 1875-1950 (Editora UFMG)

A Guerra das Salamandras
Karel Capek
Trad.: Luís Carlos Cabral
Record
336 págs.
R$ 39,90

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Acontece em Londres, na Biblioteca Britânica, a exposição Out of this World [Fora deste mundo], que explora o imaginário da ficção científica e seu papel nas descobertas da ciência. A mostra, que segue até 25/9, traz a visão da mídia sobre o futuro, mundos alienígenas, realidades paralelas, visões apocalítpicas – como em A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells –, utopias e distopias e suas funções em regimes autoritários e o ciberespaço. Informações em www.bl.uk/whatson/index.html.

(1) Comentário

  1. FICÇÃO CIENTÍFICA VERDADE: De fato, em época de globalização e mercados mundiais trocando sua mão-de-obra por países asiáticos, “A guerra das salamandras” parece nos alertar para os riscos de um sistema que configura em opressão, pois a tendência é sua evolução. A ficção científica é um gênero que às vezes empresta sua ótica de um mundo futurista para tecer severas críticas à ordem estabelecida. Também, “esse romance e a obra de Capek são marcados pelo burlesco, no tratamento leve de temas sérios como a crueldade humana, a exploração do homem pelo homem e sua incapacidade de atribuir humanidade plena ao outro”. Não seriam essas algumas características observadas nos regimes totalitários? A violência do Estado é sempre minimizada, e muitas vezes incentivada entre os cidadãos (em tempos de beligerância). A sensibilidade do autor em perceber as mudanças, o fatalismo dos tempos então vindouros, faz crescer a curiosidade sobre sua literatura, pois se vislumbrava tal caminho, seria hoje possível um novo vislumbre? Um renovado modo de sentir esses tempos? Tempos mais próximos, tecnologicamente, do estilo da ficção científica, contudo mais duros, do ponto de vista humanitário. Mas, quem ganha e quem perde com a “natural” evolução da sociedade, nesses tempos mais que competitivos?

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