Eu e ela
Foto: Sarah Kothe/Unsplash
Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.
Era o avesso do sol. O oposto da multidão. O vazio gritava como quem clama por socorro. Era olhar para dentro e enxergar o abismo sem fim. Éramos nós. Eu e ela. Singela companhia. Brutal parceria. Não desista. Não. Em frente. Enfrente. Era moradia ou prisão? Os objetos tomavam vida de quando em quando. As cadeiras me faziam rir com a acidez dos comentários sobre a situação política. O esfregão debochou da minha aparência quando eu quis mostrar pra ele que éramos muito parecidos. Quase gêmeos. Fazia frio, fazia muito frio. Meus ossos doíam diante da baixa temperatura. Ou a dor tinha como fonte o meu silêncio? Ventania. As janelas uivavam, as taças do vinho barato tilintavam, prestes a quebrar. Isso é vidro vagabundo, ouvia com nitidez a frase de minha mãe reverberando em memória, quase como a perfurar os meus tímpanos. Uma lágrima escorria. Eu ainda sentia o gosto amargo da fruta podre que havia comido no café da manhã. Ou este era o gosto das lembranças de tempos de outrora que, por sorte, não voltariam mais? Eu já não sabia mais distinguir passado, presente e futuro…futuro? Não sonhava em mais do que suportar o agora. Sobreviver ao mergulho pontiagudo no fundo do pântano. Emergir quando alguém me pegasse pela mão. A mão? Eu gostaria de ser tomada por concreta divindade e ser carregada para uma existência onde as entranhas não ardessem, onde o sangue que corre nas veias não queimasse feito fel. A garrafa de água sorriu pra mim. Disse-me que era melhor espantar estes pensamentos e parar de escrever bobagens. Eu entendi como uma afronta. Quem é você pra me dizer o que fazer ou não da minha vida? Vida? Estou viva? É a isto que chamamos vida? Ela me encarou, fiquei constrangida. Levante daí e vá passar um batom. Tenho medo de gente que parece assombração. Imediatamente, joguei a garrafa no chão. Ela permaneceu intacta e resmungou: faça o que quiser, eu vou durar muito mais tempo do que você. E ficou lá, imóvel e reflexiva. Neste exato momento, senti que era o princípio do fim. Faltou-me o ar. Ressecou-me a boca. Apaguei por um segundo e me vi habitando um quarto sem luz. Só. Muito só. Retornei ao aqui agora. Continuava só. Eu e ela. Doce companhia. Amarga parceria. Num ímpeto, após longos meses soterrada no lado direito do sofá cinza-sem-graça, levantei-me. Fui dançar para não sucumbir ou para o meu corpo ficar odara. Ainda gostava de ouvir os conselhos de Caetano. Me reconhecia na deusa tigresa que falou que o mal é bom e o bem, cruel. Com o som bastante alto tocando qualquer música, rodopiei. Rodopiei incontáveis vezes até cair ao chão e dar de cara com a garrafa, contra quem acabara de cometer uma estúpida violência. Ela sorriu. Não disse nada. Eu gargalhei. Depois, chorei. Caí em prantos. Fiquei estatelada ao lado dela, como fôssemos cúmplices de uma mesma insípida existência, sem perspectiva de avanços. O chão era frio, muito frio. As janelas continuavam uivando. Gritaram meu nome, eu ouvi. Estão gritando meu nome. As janelas têm essa mania. Todo dia é isso agora. Gritam, mas não dizem o que querem. Eu também grito. Grito? A garrafa não respondeu. Era costumeiro que me ignorasse quando estava magoada. Me olhou desconfiada. Enfurecida, chutei o objeto para o canto da sala. A tampa, que estava semi aberta, escapuliu por completo. O líquido incolor, inodoro, sabor tóxico-plástico, espalhou-se pela sala. Molhou os meus cabelos. Eu me levantei e, depois de infindos dias, vi meu reflexo no espelho d’água que se formara no piso reluzente. Permaneci ali por segundos, ou minutos. Quiçá: séculos. Achei bonita aquela mulher que me observava. Sorrimos. Sós. Éramos nós. Somente nós. Eu e ela.
Amanda Schmitz, 31, é atriz, palhaça e arte educadora. Aventureira da escrita e das musicalidades, é uma das fundadoras de um grupo de teatro que pesquisa a linguagem das máscaras, o Grupo Desembargadores do Furgão. Mora em São Paulo.