“Eternos a nomeiam moly”

“Eternos a nomeiam moly”
(Foto: Bob Sousa)

 

Fotos de Bob Sousa

A encenação de Molly – Bloom, em cartaz no Sesc Avenida Paulista até o dia 28 de agosto próximo, é um instrutivo exercício de confirmação da asseveração proferida nos anos 1920 pelo editor e poeta inglês Richard Aldington: a de que James Joyce podia fazer qualquer coisa com as palavras – qualquer coisa. A personagem definida por seu próprio criador como uma mulher “perfeitamente sã de espírito, totalmente amoral, fertilizável, inconfiável, cativante, perspicaz, limitada, prudente, indiferente” dá-se a conhecer por meio de uma longa fala cujos pontos cardeais, ainda de acordo com Joyce, são os seios, as nádegas, o ventre e o sexo, que as palavras respectivamente representam. Trata-se da figura mais simbólica do romance Ulysses, embora, pouco afeita à abstração, ela se expresse por meio da enunciação concreta de seu próprio corpo.

O espetáculo – dirigido por Bete Coelho e Daniela Thomas, com codireção de Gabriel Fernandes – concentra-se em conferir densa e variegada plasticidade ao texto, constituindo uma espécie de ode à palavra a partir das sondagens intelectuais, narrativas e lúdicas que o modernismo soube explorar tão bem. A palavra desabrida de Molly atravessa a história da cultura ocidental e evoca não somente a palavra pudica da Penélope homérica como também a palavra libertária das sufragistas do início do século 20, confrontando, pelo meio do caminho, a palavra ressentida de Emma Bovary. Bete Coelho, em performance admirável, valoriza os aspectos fonéticos, morfológicos, sintáticos e semânticos de uma prosa errática, caudalosa, fascinante, que seria impenetrável, não fosse perspicazmente babélica.

(Foto: Bob Sousa)

O solilóquio mais celebrado, talvez, da literatura moderna, segundo Peter Gay – cerca de 45 páginas corridas, sem pontuação, nas quais a famosa personagem tece um sem-número de intrincadas associações de ideias, memórias, sensações e percepções que acabaram virando sinônimo da técnica do fluxo de consciência –, ganha, na encenação da Cia. BR 116, uma espécie de prólogo com o qual estabelece uma ativa relação dramatúrgica: o retorno de Leopold Bloom – Roberto Audio, igualmente notável em cena, com pleno domínio de corpo e voz – para casa e o revezamento dele e de sua mulher entre sono e vigília. Ele fala, enquanto ela está dormindo; ele acaba por adormecer, ela desperta e fala. A apresentação paralela, mas excludente, de ambos os personagens evoca outro paralelismo digno de nota. Durante o solilóquio de Molly, salpicado de recordações, retorna sempre à mente da mulher a figura do marido, o mesmo ocorrendo com Leopold ao longo daquele dia tão atribulado: Molly não lhe sai dos pensamentos – similaridade que levou Frank Budgen a afirmar que tanto um como o outro têm isso em comum, “extraem da inconstância tributos à fidelidade”.

Distraídos cada vez mais pela tagarelice dos tempos contemporâneos, que tudo informam, mas nada dizem, somos convidados ao longo dos 80 minutos do espetáculo a mergulhar na voragem de um discurso irresistível, poroso aos significantes, mobilizador de significados, pluripotente. Um discurso que encerra o romance, mas não se encerra nunca ele mesmo – ouroboros que é. A fala de Molly Bloom, segundo seu criador, gira devagar, com firmeza e envolve tudo com sua irrefreável paixão pela vida. Há que se pensar na correspondência da insaciedade de duas bocas de onde emanam prosas de ritmos tamborilantes e sinais invertidos: a da cantora de ópera cujo mote é “sim eu disse sim eu quero Sim” e a da inquietante criação beckettiana que se esquiva com seu emblemático “eu não”.

(Foto: Bob Sousa)

O cenário de Daniela Thomas e Felipe Tassara e o desenho de luz de Beto Bruel potencializam a imagem do quarto do casal como espaço para o fluir do pensamento, dando relevo ao leito desses Ulisses e Penélope modernos, que parece suspenso no tempo e no espaço, apartando Molly da realidade externa e constituindo verdadeiramente um canal para o escoamento do curso de sua infinita interioridade. A direção de vídeo de Gabriel Fernandes amplifica a imagem da consciência da protagonista, sugerindo uma simultaneidade e multiplicidade de ocorrências que flertam muito sensivelmente com a ideia da infinita variedade de expressão da natureza feminina, como queria Joyce.

Além de um bom número de títulos já traduzidos para o português (muitos deles por Caetano W. Galindo, consultor dramatúrgico da encenação, cuja dedicação à divulgação da obra de James Joyce entre nós é digna de apreço, e um verdadeiro alento em um mercado editorial exangue como o nosso), o leitor brasileiro tem à disposição com Molly – Bloom uma excelente oportunidade de conhecer – por um tipo sui generis de experiência corporal-sinestésica que somente a arte do teatro é capaz de proporcionar – uma criação literária que é pura invenção. Ou se aprofundar nela. “Nossa sociedade parece ao mesmo tempo calma e violenta; de toda maneira: frígida” afirma Roland Barthes em O prazer do texto. Contra o envenenamento de tal frigidez em nossos espíritos, nada melhor do que nos servirmos fartamente do mesmo fármaco que Hermes oferece a Ulisses à entrada da morada de Circe. Molly Bloom é a palavra que urge, a ânsia de comunicar o implícito e o explícito de uma tessitura erótica que constitui um redondo “sim” à vida, e que a presunçosa moralidade contemporânea, estilhaçada em meio a tantas pautas reivindicatórias, vem insistindo em nos negar.

(Foto: Bob Sousa)

MOLLY – BLOOM
Sesc Avenida Paulista
Avenida Paulista, 119 – Arte II (13º andar) – Bela Vista – São Paulo
Quarta a sábado, às 21h; domingos, às 18h
Ingressos: R$ 30,00
Duração: 80 minutos
Classificação: 14 anos
Até 28 de agosto

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997, onde atualmente é diretor.


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