“Estes também são anos de chumbo”

“Estes também são anos de chumbo”

“A ditadura militar é nossa grande história insepulta, a narrativa que não vai terminar nunca”. A fala do escritor Bernardo Kucinski mostra a coerência do título do terceiro debate da Pauliceia Literária: “Anos de chumbo: ontem e hoje”, que aconteceu nesta quinta (15), no auditório da Associação dos Advogados de São Paulo. Com mediação do poeta e jornalista Heitor Ferraz Mello, Kucinski e o escritor Julián Fuks conversaram sobre suas produções literárias, as relações entre memória e ficção e, principalmente, o significado de narrativas que abordam épocas ditatoriais na contemporaneidade.

Para Kucinski, o “golpe que houve em 1964 tem um pouco o aspecto do que está acontecendo hoje, de grande choque e comoção nacional”. Fuks foi mais enfático em seu paralelo, levantado pelo próprio título da mesa: “A princípio, pensamos nos anos de chumbo hoje como ideias de 1964 repensadas no discurso atual. Mas esses também são anos de chumbo, nas ruas hoje. Vemos a repressão violenta nas manifestações, a apologia à violência e, mais do que isso, uma violência brutal exercida contra pobres e negros nas periferias da favela. Vemos um aparato militar que não foi destituído, que existe na forma de polícia militar exercendo uma violência premente”.

Questionado se, nesse contexto, a literatura é também sinônimo de resistência, Julián Fuks apontou para a tensão histórica entre forma e conteúdo, o que não permite que a função da literatura se torne definitiva. Kucinski, de forma semelhante, refletiu sobre a relação entre momento histórico e produção cultural: “Se você vive em um mundo violento, como o de hoje, a literatura reflete isso. Eu não escrevo para denunciar nada, mas algumas coisas acabam aparecendo ali”.

Ficção e realidade

Com um estilo que “anda entre o ensaio e a ficção”, nas palavras de Heitor Ferraz, Julián Fuks, que foi aluno de Kucinski quando este ministrava aulas de jornalismo, falou muito sobre seu último livro, A resistência (2015). O tom de relevância política, que o levou a começar a escrever, continua presente, porém, entremeado de memórias de seus laços com seu irmão adotivo e da vinda de sua família para o Brasil na década de 1970, quando fugiam da ditadura na Argentina.

As perguntas a Kucinski debruçaram-se principalmente sobre suas duas últimas obras, K (2013) e Os Visitantes (2016). Livros que tem como tema o desaparecimento real de sua irmão durante a ditadura militar. Jornalista há anos, ele estreou como ficcionista há pouco tempo, e passou a usar temas verídicos há menos tempo ainda, em um “momento de olhar para coisas mais essências, pessoais de minha vida”, como contou.

Duas questões centrais percorreram todo o debate, conectando a produção de Fuks e Kucinski: o uso de vivências profundas para fazer ficção e a temática bem próxima de ambos. Para o autor de A resistência, a divisão entre ficção e realidade é ambígua: “A memória é sempre falha, equívoca, e acaba virando ficção quando é colocada no papel”, mas, “vira uma realidade na medida em que a narrativa é vivenciada”.

Ele acredita que “são nos hibridismos contemporâneos que toda ambiguidade da narrativa aflora”. Kucinski, que navegou com muita desenvoltura entre memória e ficção em seus livros, acredita que isso é uma forma de “voltar para você mesmo”. Apontou em seu anos de jornalismo uma prática que o ajudou a lidar com a linguagem ao mesmo tempo em que criava uma “camisa de força racionalista cartesiana”.

Quanto ao tema semelhante da ditadura, que Heitor Ferraz acredita ter crescido nos últimos anos, Fuks percebe um retorno atual de marcas autoritárias de nossa história que estavam escondidas, e que, visíveis agora, motivam as pessoas a escrever a respeito. Bernardo, apesar de ver a ditadura como um tema que nunca acaba, uma narrativa que sempre retorna no Brasil, acredita que os últimos autores têm focado mais em escrever sobre tabus como sexualidade e família.

Pauliceia Literária 2016
Onde: Auditório da AASP, Rua Álvares Penteado, 151
Quando: Até 17/09
Quanto: Grátis
Info: www.pauliceialiteraria.com.br

Deixe o seu comentário

Artigos Relacionados

TV Cult