Esse tempo

Esse tempo
Foto: Maksym Kaharlytskyi/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


A casa ainda está vazia. Desde que eu entrei aqui. Há uns dois anos… sei lá. O tempo também é o mesmo. Esse tempo que me faz parecer intacta. Me movimento pouco. Quarenta e dois metros quadrados. Nada muito grande. Sou pequena. Meu corpo ocupa esta casa. Uma ocupação que me parece mais inércia. Ocupação. Gosto dessa palavra. Me ocupo dela. Apropriação. Quero encontrar outro corpo que seja meu aqui. Estou só com meu espelho da sala. Nele eu vejo plantas se movimentarem. Cada folha seca que cai, cada florzinha nova que desabrocha, cada galho que cresce. Não sei. Parece tudo tão novo. É esse tempo que me faz parecer surpreendente. Não sei, mas sinto que posso conseguir algo enquanto busco. Procuro ainda o que é invisível. Meus olhos estão dilatados. Pupila. Pupila. Eu fumo e bebo. Não sei que horas são. Que horas são? Esse tempo que me faz parecer a mesma. Sou outra já. Quanto tempo mais? Eu acho que preciso de café agora. A cozinha está com a pia cheia de vestígios. Quem passou aqui? Eu me canso de andar pouco. Preciso de ar. Este ar é puro? Essa água é potável? Esse chão está limpo? Me faltam palavras. Eu me repito muito. Tento escrever. Uma linha e nada mais. Uma mesma linha que se repete muito na minha cabeça. Esse tempo que me faz repetitiva. Me faz abusar de mim mesma. Eu me uso muito mal. Durmo às tardes porque são mais longas. Perdi um pouco da noção. Desligo a TV, porque o chiado me desespera. Os grandes intervalos entre uma utilidade e outra me afligem. Esse tempo que me faz parecer inútil. Credo. Eu volto atrás. Busco meu contrato. Nada aqui descreve isso. Não há manual nem cláusulas explicativas. Não há meu nome. Não sou eu quem deveria estar aqui. Busco alguém na janela. Ela, que vive aberta. Eu entro nela. A janela sempre me foi alta demais. Eu espero um pouco. Eu respiro com paciência. Eu preciso enxergar o que me faça sentido. Esse tempo que me faz incompreensível. Nada me entende. Eu releio o livro que li por obrigação. Continuo me obrigando a ler. Ler. Essa atividade do conhecimento. Preparo meu banho. Me banho. Recoloco a blusa. A mesma. Essa casa me veste inteira. Minha casca. Minha casa. Estou sempre precisando de coisas. Não sei quais coisas. São coisas. Entende isso? Esse tempo que me faz incompleta. Monto um quebra-cabeça pela metade. Não entendo a realista imagem. Estudo mais um pouco. Mais afinco agora. Sinto que preciso me dedicar mais em mim. Eu sou o meu objetivo agora. Não sei desde quanto nem até quando. Mas eu sou o meu maior objetivo agora. Preciso de mim mais que nunca. Eu percebo que não me basto. Mas eu tento a distração. Me encho de perguntas. Não me respondo, porque não quero. Eu sei. Mas não quero. Faço um macarrão como fiz ontem. O de agora perece pior. Sinto que estou piorando. Como. Me alimento. A casa está tão linda. Eu reparo nos meu cantos. Vejo uma teia de aranha e a ponta de um fio. De onde vem? Nunca me perguntei isso: de onde vem? Continuo não me respondendo. Esse tempo que me faz duvidar de tudo. Não concluo, observo. Ouço um barulho depois de muito tempo. Não sei de onde vem. Estou farta. Ah! Estou farta. Preciso parar um pouco. De pensar. Estou cansada. Abro a geladeira. Vazia. Pouco gelada. O café esfria. O banho esfria. O macarrão esfria. A cama esfria. A cerveja esfria. O cigarro esfria. A mão esfria. Esse tempo que me faz gelar. Não encontro muitas saídas. Nenhuma. Tenho boa saúde, dizem. Eu acredito pouco. Eu recebo uma ligação inesperada. Me assusto. Uma voz. Olha: uma voz. Eu rio. Faz tempo que não via meus dentes. Eu rio. Converso por alguns minutos. Dezesseis. Me assombro com a beleza de me perceber só. Sinto tesão. Não vou para o quarto. Olho pela janela do banheiro que é menor e tem um bom ponto de vista para o céu. Está azul. Marejado. Que lindo. Fico ali por um tempo. Meu corpo se encosta inteiro no azulejo suado. Me umedeço. Um bando de pássaros riscam o azul do céu no meio. Eu vejo ele sangrar. Uma gota de água do chuveiro cai na minha cabeça. Sinto ela escorrendo na minha testa. Nariz. Boca. Engulo. Mato a minha sede. O céu está de novo inteiro. Azul. Pressiono mais meu corpo contra a parede fria. Me arrepio. Levanto a blusa que já é pele. Gozo. Não grito. Esse tempo que me faz silenciar. Vou até o relógio. Três e meia. Estou de ponta cabeça. Tenho um sono leve. Não quero dormir agora. Decido voltar a procurar as coisas pela casa. são tão poucas coisas, parece. Ou eu é que já me acostumei com elas? Queria encontrar coisas novas. Escova. Caderno. Xícara. Calcinha. Anel. Quadro. Insetos. Poeira. Cereais. Líquidos. Lençóis. Lanternas. Qualquer coisa que me pareça ter chegado depois de mim. Depois. Nada. Estou limpa. No sofá rasgado da sala. Na cama. Estou limpa. Na cadeira na cozinha. Na privada. Estou limpa. Esse vocabulário não funciona. Preciso de frases novas. Procuro. Vejo a bicicleta parada. Coitada. Não deve estar entendendo nada. Eu ainda posso andar. Não ela. Me compadeço. Esse tempo que me faz solidária. Faz tempo que não envelheço. Loucura. Coloco o despertador. Penso. Desligo o despertador. Durmo. Agora me sinto bem. Melhor. Até acordar novamente. Até eu acordar. Até acordar.

Bruno Canabarro, 27, mora em São Paulo, é artista e arte-educador. Precisa das palavras para conseguir respirar melhor no mundo, por isso, escreve como quem renasce com a linguagem.

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