Especial Paulo Arantes | Depoimentos de Ricardo Musse, Vera da Silva Telles, Maria Elisa Cevasco e outros sobre o filósofo
(Foto: Marcus Steinmeyer)
A edição 272 da Revista Cult convidou, para compor o especial “Paulo Arantes”, algumas pessoas que conviveram com o filósofo para darem um depoimento sobre ele.
O resultado é uma manifestação de afeto. Os textos de Ricardo Musse, Vera da Silva Telles, Maria Elisa Cevasco, Francisco Alambert, Frederico Lyra, Raphael F. Alvarenga e Tércio Redondo compõem a terceira série de depoimentos exclusivos do site.
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Um marxista ocidental
Ricardo Musse
Doutor em Filosofia pela USP e professor no Departamento de Sociologia da USP
Paulo Arantes conta que quando ingressou como aluno no curso de Filosofia da USP, na rua Maria Antônia, obteve uma atenção especial da parte de dois jovens professores, Bento Prado Jr. e Roberto Schwarz. Não se trata apenas de uma lembrança afetiva. Bento e Roberto foram seus mestres iniciais, influências justapostas às dos tios Gilda e Antonio Candido. Esteve assim, desde o primeiro momento, mais próximo do ensaísmo do grupo Clima que da filosofia universitária. A forma-tratado do seu primeiro livro Hegel: a ordem do tempo (1981), originalmente tese defendida na França, foi apenas um tributo para ser reconhecido por seus pares.
Nas obras dos anos 1990, Sentimento da dialética (1992), Um departamento francês de ultramar (1994), Ressentimento da dialética (1996), O fio da meada (1996), Sentido da formação (1997) – conjugação de ensaios e fragmentos – convergem a crítica da filosofia técnica, profissional e a busca da compreensão da especificidade brasileira, modalidade retardatária da modernização capitalista. Esse bloco, requalificando o conceito de “formação”, permite ao historiador das ideias inserir Paulo Arantes como um dos expoentes brasileiros da tradição do marxismo ocidental.
A partir de 1998 sua trajetória intelectual sofre uma inflexão muito bem reportada por Roberto Schwarz em comentário cujo título significativamente é “Paulo 2º”.
Sensores críticos: tudo fora da ordem
Vera da Silva Telles
Doutora em Sociologia pela USP e professora livre-docente do Departamento de Sociologia da USP
Paulo Arantes tornou-se e é referência para professores e pesquisadores, militantes, ativistas, gente das universidades e de fora delas, atuando nos mais diversos campos do conflito social e da resistência política. Ao longo dos muitos anos, miríades desses e mais tantos outros interessados passaram pelos Seminários das Quartas – lócus de gravitação de tudo isso, ponto de condensação de discussões, reflexões partilhadas, questionamentos agudos, críticas aguçadas, ácidas, tudo isso se compondo, conforme tempos e momentos, em um pauta ampliada e diversa de questões, algo como petardos críticos a colocar em foco os avatares da barbárie brasileira – e do capitalismo contemporâneo, as derivas das esquerdas e os ardis de sua captura em um bom-mocismo gestionário, o encolhimento do pensamento crítico ou mesmo o seu esvaziamento sob a lógica acadêmico-burocrática das universidades. Mas também, o acolhimento generoso e reflexivo, e crítico, dos sinais da rebeldia, das insubmissões, das experimentações, das fissuras e das fricções que compõem o mundo e abrem frestas possíveis para a ação e reflexão. Se Paulo Arantes tornou-se referência não é apenas pela força crítica de seus escritos e suas intervenções públicas. Pois trata-se do exercício da razão crítica que se desdobra em uma prática e um modo de se por e se lançar no mundo, a mil anos de distância do encapsulamento acadêmico com suas rotinas e seus protocolos de “reconhecimento”. Tudo “fora de ordem”. E é isso que faz de Paulo Arantes tão singular e tão impactante em seus escritos, suas intervenções, iniciativas e interações, diálogos críticos e acolhimento generoso das experimentações sociais e políticas e culturais que vão se fazendo nas frestas da nossa barbárie cotidiana. Para quem, como eu, está ancorada na Universidade – e o fato de ser uma universidade pública não é um “detalhe” – tudo isso tem uma importância ímpar, pois sinaliza um certo modo de se exercitar o nosso ofício como professores e pesquisadores, intrinsecamente conectado e aberto a ser afetado pelas questões postas no mundo, trabalhando os sinais desses “sensores críticos” que pontilham o mundo social, refletindo junto com indivíduos e coletivos que desbravam esses territórios incertos da invenção e experimentação políticas.
Quem pensa abstratamente?
Maria Elisa Cevasco
Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela USP e professora titular da mesma instituição
Quem diria que um filósofo especialista em Hegel, com tese de doutorado pela Universidade de Paris X, publicada em francês com o título L´ordre du temps: essai sur le problème du temps chez Hegel, ia se transformar naquela figura que a ordem do nosso tempo nega, um intelectual público, que põe a máquina azeitada de sua dialética a serviço dos debaixo?
Pensando em que escrever sobre esse professor, cujas aulas assisti como ouvinte e cujos livros me ensinaram mais do que posso avaliar, fui espiar o tal livro sobre Hegel. Uma das epígrafes, do próprio Hegel, diz “Porque o tempo aparece como o destino e a necessidade do espírito”, e aí atinei, ou, como tantas vezes discutindo com e sobre o Paulo, achei que atinei, com uma possível resposta. Ele sempre se referia em suas aulas que a dialética eleva seu próprio tempo histórico ao pensamento. Então, o nosso filósofo militante está, com todo seu arsenal que nunca acaba – ele leu e criticou tudo – pensando e esclarecendo nossos tempos sombrios. Vendo o site incrível organizado pelo Pedro Arantes e equipe, que congrega as obras dele e de Otília, companheira de vida intelectual e pessoal, fiquei impressionada com os títulos de suas intervenções mais recentes que definem todo um projeto intelectual, “Um mundo coberto de alvos”, “1964-2018: a que ponto chegamos?”, “O último círculo: hipóteses sobre a catástrofe brasileira”. Se um dia esse desastre chamado Brasil vier a ser recuperável, Paulo terá ajudado a arrumar a desordem do tempo.
Matéria brasileira
Francisco Alambert
Doutor em História Social pela USP e professor do Departamento de História da mesma instituição
Paulo Arantes começou a filosofar jogando bola na areia das praias de Santos. Olhava para horizontes infinitos, morros e pontes. Bento Prado também fora chegado a um futebol, só que na rua. Alegava ter aprendido a filosofar tabelando com muros.
Antonio Candido disse certa vez que Sérgio Milliet foi o “homem ponte” que ligou o primeiro momento modernista àquele próprio da geração do então jovem crítico literário. Poder-se-ia dizer também que Candido foi a ponte que ligou o Brasil com a crítica marxista de Roberto Schwarz, por sua vez o homem ponte que desemboca naquilo que Paulo Arantes arquitetou. Certo. Porém, nessa engenharia de pontes, Paulo certamente toma as estruturas, só que para invertê-las. Ou dinamitá-las. Pois tudo o que fez e faz desmonta e remonta muros, pontes e castelos de areia dessa coisa esquisita chamada “matéria brasileira” – e sua fratura exposta nos tempos do mundo já sem horizontes.
Periferização do centro
Frederico Lyra
Mestre em Música pela Universidade de Sorbonne e doutorando em Estética pela Universidade Lille 3
Para alguém que não é de São Paulo, muito menos da USP, não é coisa fácil encontrar o pensamento radical de Paulo Arantes. A periferia da periferia fica, muitas vezes, mais longe que o centro. Tudo muda depois de Junho de 2013. Este acontecimento, sismógrafo radical do tempo brasileiro, prenúncio do que estava por vir, também catapultou o seu pensamento para todo o país. Foi através do vídeo no qual ele intervém com uma aula pública em meio às manifestações de junho que descobri Paulo. Ou seja, meu primeiro contato não foi com a sua ensaística – única e admirável –, mas pelos nós do fio da meada da sua exposição oral. Esta parece ser a maneira própria de intervenção na acelerada marcha da desintegração do mundo, e assim ele agiu durante a pandemia. Hoje assisto da França, local privilegiado de suas análises, terra da Samaritaine e do cognac, à periferização do centro que ele decifrou e que, como o resto do mundo, se parece de fato cada vez mais com o Brasil, e vice-versa.
Um farol
Raphael F. Alvarenga
Doutor em Filosofia e Letras pela Universidade Católica de Louvain e coeditor da revista Sinal de Menos
Pessimista, catastrofista, niilista? Para nós que há anos buscamos descortino e gume político em seus escritos e intervenções, o Paulo é antes um farol, ajudando-nos a enxergar, na nebulosa noite do presente, os obstáculos e viragens perigosas na busca incerta de uma passagem a noroeste. De suas contribuições recentes, que vêm dando o que pensar, destacaria a que relaciona desconstrução, novo tempo do mundo e matéria brasileira. O que significa a tradução literal da noção de verdade desestabilizada nas filiais americanas da Ideologia Francesa em prática política real de sociedades capitalistas em fim de linha – em contexto de guerra civil do mundo do trabalho, subjetividade sitiada, indiferentismo? E o que nossa diferença específica, a complicação original que é o Brasil, reino da mercadoria em estado puro e ponta de lança da periferia em decomposição, tem a dizer sobre o presente do mundo? Sua reflexão atual assinala nada menos do que a possibilidade de desconstruirmos a mitologia planetária da desconstrução de dentro do laboratório brasileiro da desintegração social total.
Apreço pela palavra
Tércio Redondo
Doutor em Letras pela USP, professor de Literatura Alemã na mesma instituição e tradutor
Vim a conhecer Paulo Arantes pessoalmente no assim chamado Seminário das Quartas, um evento de realização quinzenal, fora da agenda oficial da Faculdade de Filosofia da USP. Isso se deu em meados de 2007. Fui levado até lá por minha amiga Priscila Figueiredo. Desde então, embora sem a assiduidade que procurei me impor desde o início, participei de numerosos encontros. Não há como sintetizar as discussões realizadas nesse fórum numa perspectiva temática ou disciplinar; em minha opinião ele pode ser mais bem caracterizado do ponto de vista da dinâmica de seus debates. Reside aí, creio, uma de suas notáveis singularidades. Vale lembrar que esse seminário foi e é uma construção coletiva, mas, vamos dizer assim, os interesses mais gerais de Paulo e, em particular, o seu comportamento nas reuniões tiveram sempre um peso considerável na coisa toda. Destaco aqui, de maneira muito sumária, apenas alguns pontos entre tantos que eu poderia mencionar e que para mim se traduziram desde o início numa experiência única. Abertos a quaisquer interessados, os seminários sempre tiveram hora marcada para começar, mas não para terminar; a extensão da conversa dependendo fundamentalmente do interesse despertado pelo assunto. O ritual de um tempo estipulado para as falas foi desde logo suprimido, restando dos usos e costumes acadêmicos apenas a necessidade da inscrição para falar. Perguntas que chegam a durar 20 minutos ou mais, em meio a toda sorte de digressões e mesmo à perda completa do fio da meada, não constituem a regra, mas são algo familiares a seus participantes. Paulo sempre ouve tudo e todos com máxima atenção (o que é também um gesto de deferência, especialmente em relação aos mais jovens). Nos seminários, passei a observar que, daquilo que ouve, Paulo registra com especial atenção certos termos e expressões – a maneira específica de uma formulação. Isso aparece em seguida quando ele mesmo fala, pois amiúde esse resgate de uma partícula do discurso alheio promove uma refração inesperada no argumento e lança luz nova à discussão. A afluência do público aos encontros é variável e creio já ter notado no dedicado Paulo um quê de desapontamento ao contemplar uma sala menos cheia quando, por exemplo, a literatura é o assunto da vez. A desatenção às artes é um dos pecados maiores que, me parece, ele constata entre pesquisadores e militantes das mais diferentes origens. Os seminários foram suspensos em virtude da pandemia. Todavia, faço este breve relato como se falasse sobre algo pertencente não ao passado, mas ao presente, na expectativa, fundada espero, de seu breve retorno.