Especial Paulo Arantes | Depoimentos de Pablo Ortellado, Lidiane Soares Rodrigues, Georgia Sarris e outros sobre o filósofo
(Foto: Marcus Steinmeyer)
A edição 272 da Revista Cult convidou, para compor o especial “Paulo Arantes”, algumas pessoas que conviveram com o filósofo para darem um depoimento sobre ele.
O resultado é uma manifestação de afeto. Os textos de Pablo Ortellado, Lidiane Soares Rodrigues, Georgia Sarris, Nilton Ota, Luiz Renato Martins, Edu Teruki Otsuka e Fábio Mascaro Querido dão continuidade à a série de depoimentos exclusivos do site.
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Três coisas que aprendi com Paulo Arantes
Pablo Ortellado
Professor de Gestão de Políticas Públicas na EACH-USP e colunista do jornal O Globo
1. Pourquoi des philosophes? Quando cheguei ao departamento de Filosofia, vindo da História, Paulo Arantes me perguntou intrigado: “Por que você está trocando uma disciplina empírica pela Filosofia?”. Tanto como orientador, como condutor do Seminário das Quartas, seu compromisso é com a mais rigorosa formulação conceitual amparada em investigação empírica original. Nos Seminários das Quartas, a regra é a investigação sociológica e a exceção a Filosofia. Nisto, sua postura lembra aquela do projeto original do Instituto de Pesquisa Social antes de se acanhar em crítica filosófica da civilização.
2. A crítica é um esforço coletivo e intergeracional. Paulo concebeu e difundiu a ideia de uma tradição crítica brasileira que seria gestada com a estufa francesa, dava os primeiros passos com Antonio Candido, se consolidava no seminário do Capital e se desdobrava a partir dos anos 1970 em ciência social crítica. Essa tradição não era brasileira (era paulistana) e talvez não fosse tão coesa, mas projetava uma verdadeira família de pensamento.
3. A melhor homenagem a um pensamento é submetê-lo à crítica. A grande capacidade de Paulo Arantes de combinar resultados de pesquisa empírica com insights penetrantes se deve à forma ao mesmo tempo rigorosa e crítica com a qual incorpora conceitos de outros autores. Seu pensamento é heterodoxo por natureza e a pior homenagem que poderíamos fazer a ele seria convertê-lo em uma espécie de professor emérito.
Libido sciendi
Lidiane Soares Rodrigues
Pós-doutora em Sociologia pela USP e Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos
Entrei na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, para cursar História, em 1999. Vivíamos o “governo FHC” e tudo parecia conspirar em favor de um certo clima: esta foi a escola que formou o Presidente que a traiu. Durante os anos do bacharelado, esse assunto era o pãozinho do café da manhã no vão da História. No curso, éramos todos meio anarcas e tudo o que vinha do “prédio do meio” – uma categoria nativa, investida de sentido pelo microcosmo da faculdade àquela época – tinha um sabor demasiadamente institucionalizado e burocratizado, pois nele estavam os verdadeiros “herdeiros” do tal “FHC”; ali, afinal, eram ministradas as disciplinas do bacharelado em Filosofia e Ciências Sociais. Éramos meio apequenados diante destes cursos chiques e teóricos que produziam Presidentes. No entanto, meu mundo sofreu uma reviravolta quando um sociólogo me levou ao “Seminário das Quartas”, garantindo que eu mudaria o jeito de ver o tal “prédio do meio”. Ele estava certo. Desde então, tornei-me leitora voraz de tudo que Paulo Arantes publicava, tornei-me frequentadora assídua de eventos em que ele estava, busquei todas as referências por ele citadas e fiz um índice onomástico para Um departamento francês de ultramar – uma insanidade atrás da outra. Por motivos que não interessam fora do divã, eu talvez tenha me tornado uma socióloga ao fazer um doutorado sobre o “seminário Marx”. Mas o caminho que me levou à Sociologia tem “nome e sobrenome”: Paulo Arantes em Um departamento francês de ultramar. O livro sustenta uma tese sociológica por excelência, e do alto do pedantismo ingênuo que era o meu, acreditava que valia a pena reescrevê-lo inserindo empirismo e objetivação. Eu queria avançar analiticamente e o livro me auxiliava a recuar no tempo. Meu desejo de escrever a nota de rodapé que lhe faltava (ou não faltava?) mudou o rumo disso que a gente chama de carreira (ou vida, se formos mais francos). Ainda me surpreende quando escuto Paulo e alguns insights nossos convergem. Não me sinto à vontade para escrever mais, seria sacrílego. A pulsão crítica vivida numa orquestração rara e por vias tortas alimenta minha inesgotável libido sciendi. Obrigada, Paulo.
Um professor no fim do mundo
Georgia Sarris
Mestre em Sociologia pela USP e professora da Faculdade de Campinas
Do gigante que o Paulo se tornou, quero contar um pouco sobre sua atuação como professor extraordinário que é. Acho que uma das imagens mais expressivas de sua energia crítica é a da aula pública “Tarifa Zero e Mobilização Popular”. O local é o lado de fora da prefeitura, cai a tarde fria e ele fala com o mesmo rigor de sempre, de pé e com um megafone, para uma audiência atenta. De forma brilhante, generosa e incansável, mesmo depois de aposentado na universidade, seguiu formando alunos, professores e militantes em espaços os mais diversos e por fora das instituições. O que mais me impressiona, porém, nesse trabalho dedicado de formação do pensamento crítico, não é apenas a sua disposição para expor análises rigorosas sobre processos sociais e políticos, mas a sua capacidade de criar nessas situações aberturas para algo como um “pensar junto”. Antes que uma ideia, trata-se de uma prática que se dá no diálogo exigente. Há uma dimensão prática no pensamento crítico de Paulo Arantes que não tem que ver com programas de transformação social, mas antes com a produção em ato de uma outra sociabilidade que não a regida pela violência destrutiva do capitalismo. O seu radicalismo está em conseguir fazer mundo quando chama para pensar junto.
Uma outra frequência crítica
Nilton Ota
Doutor em Sociologia pela USP, professor convidado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH/USP e pesquisador da DS/FFLCH/USP
É, no mínimo, para reconhecer. Paulo Arantes elevou o engajamento político a uma lugar sem igual no pensamento crítico brasileiro. Impulsionado por uma sensibilidade cáustica sem perder a afinação dos pequenos ruídos da experiência social, impaciente com os roteiros rasurados da esquerda, Paulo tem mantido uma interlocução longa e persistente com os mais diferentes movimentos, coletivos e grupos militantes, em distintos e até inusitados espaços e situações. Mas tudo isso jamais como parte da prospecção de novos sujeitos, supostos portadores dos atributos da transformação da sociedade, ranço daqueles que não querem dizer adeus à divisão intelectual do trabalho político. Sua glosa filosófica gira em outra frequência. Sob as paixões de todo engajamento, uma experiência se sedimenta, sendo acumulada, não tanto na brecha, mas antes no rejunte da vida social. Haveria assim um conteúdo a ser decifrado na passagem da experiência crítica ao engajamento. Esta tarefa não imporia especializações. Ela já estaria aí, aberta e politizável, na marcha de uma precariedade ressentida e refletida à exaustão, desprovida de mirantes de outrora, um tanto por todos os cantos. Não é pouco.
O sentimento dialético de aprender
Luiz Renato Martins
Doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Artes Visuais, Escola de Comunicações e Artes da USP
Não falarei do que se vê de longe, mas de perto. O convívio amical com o Paulo, somado à relação de orientação (que tive), contribui demais, posso afirmar, para o senso de implantação e de direção no trabalho crítico e nas atividades de pesquisar e ensinar. Para quem teve uma formação rigorosa, mas que induzia a dar as costas ao país e às questões reais, Paulo, como professor, pilotou a volta crítica ao solo e ao contexto objetivo histórico coletivo. Na São Paulo do desmanche e a seu modo, Paulo socratiza, libera e ensina a refletir. O que será do país e de nós todos (que com Paulo trabalhamos e convivemos)? Não sei. Mas cada encontro com Paulo é sempre, para mim, um momento da oscilação permanente entre formação e desmanche. Os sentimentos de gratidão e de encantamento crítico estendem-se a perder de vista. Isto é só um depoimento de perto. Já falaram e falarão outros da importância de Paulo para o país e para o que virá ou não. – (inaudível)… é Heráclito…, ô meu, sacou? Fala sério, ô meu, ele é mais, é da hora: o cara faz e diz um dezoito-brumário por semana. Beleza! (escutei no corredor).
Vigor crítico
Edu Teruki Otsuka
Doutor em Literatura Brasileira pela USP, é professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da mesma instituição
Notando como a imaginação brasileira se alterava ao confrontar o desfazimento do sonho da sociedade salarial, Paulo Arantes passou a ensaiar uma reflexão sobre a mudança de coordenadas da crítica, ao mesmo tempo em que buscava apreender os contornos do novo mundo em que havíamos entrado. Para mim, depois dos estudos sobre a tradição crítica, foi “A fratura brasileira do mundo” que marcou um ponto de virada, como uma mina de ideias e questões que então nem começávamos a perceber. Ampliando-se em seguida, a reflexão de Paulo procura demarcar toda uma transformação, articulada à reestruturação produtiva, no imaginário político-social e no modo de reprodução da sociedade, que não se deixa apanhar com os instrumentos anteriormente disponíveis. Por isso, ele mobiliza cargas impressionantes de conhecimento para testar perspectivas críticas e mantém-se atento ao que as formas artísticas conseguem captar enquanto indícios reveladores do presente. As ideias que Paulo põe em movimento são uma inspiração fundamental para entender nosso tempo.
Crítica em ato
Fábio Mascaro Querido
Chefe do Departamento de Sociologia da Unicamp
Não há como ser indiferente a Paulo Arantes. Fascinante para alguns, excessivamente hermético para outros, trata-se daqueles intelectuais cujas reflexões estimulam reações e clivagens apaixonadas. E não por acaso. Seja qual for o tema abordado, Paulo sempre nos remete àquilo que, a depender da racionalidade vigente, nem sequer era para ser cogitado. E não é exatamente essa a força do pensamento dialético, o avesso por excelência dos esquemas pré-concebidos? Espécie de brechtiano “negativo”, porquanto periférico, Paulo pensa também com a cabeça dos outros, desviando os argumentos alheios na direção de sua própria crítica em ato. Cada pensamento, à luz do “lugar” de onde fala, representa para ele peça de um quebra-cabeças cuja compreensão supõe a suspensão provisória dos juízos moralizantes, hoje na moda igualmente em parte da esquerda. Assim, se Paulo não prescinde da ironia, não é porque abandonou o barco, e sim porque sabe que, sob as fantasmagorias do capitalismo, não há acesso direto à verdade, nem mesmo para os “de baixo”. A pena pode pouco diante da força das armas. Nas mãos de Paulo Arantes, porém, ela causa um estrondo diante do qual é impossível restar impassível.