Escrever para enlutar
(Arte: Monique Malcher)
Chegamos ao último trimestre de 2021 contando bem mais de meio milhão de vidas perdidas para a Covid-19 no Brasil. Lembro que, nos primeiros dias da pandemia, éramos alertados por epidemiologistas que esse número, então inimaginável, poderia se tornar real. Hoje vemos, entre o espanto, a revolta e uma série de sentimentos que ainda não têm nome, que seguimos ultrapassando essa marca atroz, ao mesmo tempo que lidamos com a absurda retórica governamental e mercadológica sobre vivermos “normalmente”.
Por conta disso, temos sido obrigados a afirmar regularmente a presença da morte em nossa vida. Lutamos por e por meio de números, discutindo não apenas quantos, de fato, foram vitimados na pandemia, mas quantos poderiam não ter sido. Discutimos categorias relevantes e procuramos responsabilidades. Vamos às ruas em protesto pelas mortes e em defesa das vidas. Mas também assistimos desfilarem sobre motocicletas àqueles que tentam demonstrar que a morte não é um problema assim tão grave. O caráter efusivo e até festivo que acompanha esses desfiles promovidos pelo presidente da República e seus aliados parece querer dizer algo significativo sobre as mortes. Não se trata de negá-las, mas de mostrar, veloz e ferozmente, que não merecem ser pranteadas nem veladas.
A batalha política que atravessamos hoje passa, assim, não apenas pela disputa em torno da morte, mas, sobretudo, em torno do luto. Estamos lidando com um processo de confisco do luto, entendendo-o como experiência ao mesmo tempo difusa, íntima e coletiva. Para tanto, retomo d
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