A escola escutadora e a escola de escutadores
(Foto: Wellcome Collection)
Um experimento mental realizado por epidemiologistas de saúde mental permite visualizar o quadro que temos diante de nós nesta matéria. Se reuníssemos todas as pessoas com formação especializada em saúde mental que existem no mundo, ou seja, todos os psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, social workers, counselings, agentes comunitários de saúde, enfermeiros e assim por diante, no país que hoje consideramos possuir a melhor rede de suporte em saúde, que é o Reino Unido, não conseguiríamos enfrentar nem dois terços da demanda daquele único país. Ou seja, na razão de nossos melhores recursos, com os melhores suportes, nas melhores instalações, todo o esforço concentrado do mundo não seria capaz de realmente tratar o problema como ele deve ser tratado. Como se sabe, a saúde mental é uma das áreas mais dispendiosas de toda a medicina. Isso acontece, em grande medida, em função do caráter crônico de muitos transtornos mentais, vários deles manifestos desde a primeira infância. Por isso é preciso mudar completamente a chave, hoje em vigor, na relação entre escola e saúde mental, mobilizar não apenas entre os professores mas na comunidade escolar a potência de escuta e cuidado. Criar redes de apoio no próprio território, rever a atual situação de demissão, triagem e encaminhamento pelo qual as escolas não precisam mais de classes especiais para produzir uma nova gestão da produção do fracasso escolar. Ainda que vigore uma inclusão relativa, nada se esclarece sobre o estatuto de acompanhantes terapêuticos, sobre a ingerência de métodos de treinamento psicológico, das “esteiras de diagnosticação” e da indústria jurídica da extorsão escolar, para quem pode pagar e da complacência para com a aplicação das políticas públicas redutivas, sob as palmas da redução de custos e deflação do Estado, de/para quem não pode.
O investimento em saúde mental decresce em quase todo o mundo, em grande medida, porque nos últimos 40 anos ele se concentrou em pesquisas por novas medicações, gerenciamento de diagnósticos e redução de custos em vez de qualificação básica de pessoal. Essa política mostrou-se uma aplicação genérica dos princípios do neoliberalismo em uma área intrinsecamente deficitária. Como mostramos em outros trabalhos, há uma contemporaneidade estrutural entre a emergência deste novo consenso na economia política e na política de saúde mental em particular, na virada dos anos 1970 para os 1980. Momento de gênese do discurso, hoje hegemônico, no interior do qual o sofrimento deixa de ser uma experiência a ser mitigada por meio de um novo conjunto de atitudes morais em torno da satisfação e da autorrealização no trabalho, envolvendo especialmente a proteção do trabalhador qualificado e passa a ser, ele mesmo, nova matéria-prima para o capital. Geração calculada de sentimentos como insegurança, desamparo, medo, ódio e perseguição serão encontrados nos manuais de recursos humanos. Tal discurso caracteriza-se pela padronização das práticas psicológicas, pela neutralização da etiologia dos transtornos em relação com a linguagem, com o desejo e com o trabalho, pela prevalência de narrativas que exploram hipóteses, sempre adiadas em relação a sua confirmação por evidências em marcadores biológicos, de determinações genéticas associadas com desequilíbrios em nível de neurotransmissores cerebrais (dopamina, adrenalina, serotonina, cortisol etc.). Também as descobertas em torno do genoma humano e as novas técnicas de análise do funcionamento cerebral por imagem prometiam um avanço terapêutico sem precedentes, que redundaram em uma medicalização geral da população, alcançando agora de forma inédita a infância e a adolescência. Regramentos de alimentação, exercícios físicos, viagens e meditações, as mais insólitas mudanças de hábitos e práticas pararreligiosas, morais e disciplinares, tudo foi alocado para enfrentar depressões e ansiedades, menos a ideia mais antiga e mais simples, mas mais difícil de reproduzir como uma técnica anônima, de que é preciso colocar o sofrimento em palavras, atribuir a ele alguma potência de verdade, considerá-lo dependente da linguagem, não só como expressão, mas como causa e portanto reversível por outras operações de linguagem. Quando aposentamos a ideia de que por trás do sofrimento psíquico existe uma demanda de reconhecimento, compramos também a ideia de que conflitos reais podem ser negados ou mal tratados, sem consequências para a saúde psíquica e que eles podem ser substituídos, sem custos subjetivos, pela soberania da organização, da disciplina conformista, da reeducação para a adequação e ademais com aumento do desempenho individualizado. Assim também a ideia de que sofremos coletivamente foi substituída pela vergonha e pela culpa de ser um indivíduo desprovido de potência, talento e desempenho.
Discussões sobre os excessos diagnósticos, sobre o uso reverso da medicação para estabelecer a natureza dos transtornos e o fato bruto de que a ampla e maior parte das prescrições psiquiátricas seja feita por não psiquiatras e que esta combine-se cada vez mais com outras substâncias psicoativas, legais ou ilegais, torna o quadro problemático. Investimentos massivos e concentrados não conseguem alterar os números de casos e a própria natureza de “caso em saúde mental” trivializa-se. Contudo, esse quadro não é apenas um fracasso, mas um caso de sucesso quando consideramos a operação geral pela qual experiências indesejáveis, custosas e conflitivas de sofrimento, sob a ótica do liberalismo, foram convertidas em matéria-prima para um novo tipo de capitalismo imaterial, como se veio a dizer. As técnicas de gestão, microgestão, marketing e administração, embaladas pelas plataformas digitais, são procedimentos explicitamente orientados para aumentar e administrar, no duplo sentido da palavra, mais sofrimento para produzir mais resultados.
Ora, não é preciso aderir a todas as teses da psicanálise para admitir que um de seus consensos elementares e mais originais é de que experiência de sofrimento, envolvendo conflitos entre ideias e desejos inconciliáveis (unverträglich), que excedem a capacidade de tramitação e simbolização do aparelho psíquico e que são negadas, suprimidas ou silenciadas, compõe a etiologia mais evidente dos sintomas psíquicos. Ora, se não é por uma multiplicação de especialistas, nem por um incremento ainda maior da modulação da paisagem mental que enfrentaremos a situação atual de crise global na saúde mental, a alternativa mais simples é reconsiderar o papel da escuta, potencialmente exercida por todos que se ocupam de cuidar de pessoas como prática preventiva e mitigadora do sofrimento, alterando e revertendo eventualmente a formação de novos transtornos ou o seu agravamento e cronificação. Mas isso não acontecerá pelo ensino de técnicas de relaxamento, de autocuidado ou de desenvolvimento de habilidades socioemocionais, ainda que tais procedimentos possam ser lidos, eles mesmos, como sintomas de uma cultura que desaprendeu e desautorizou a prática processos protetivos e comunitários em saúde mental.
Isso foi particularmente agudo nos processos concernentes tanto à educação formal, pelas escolas, quanto à educação informal, pelas famílias e comunidades, inclusive as comunidades digitais. A razão desse processo não é difícil de intuir. Os últimos 40 anos assistiram também à formação de uma nova razão escolar e educativa, baseada no empreendedorismo de si, forma individualizada da própria gestão das escolas, que também se viram objeto de questionamento social, como atividades cada vez mais suspeitas de improdutividade, de baixo valor agregado e de elevado custo humano. Ao mesmo tempo que o mercado descobriu o grande negócio das escolas e universidades, com seus consumidores fiéis de longo prazo, com seus monopólios discursivos que concentram centenas e às vezes milhares de unidades, pressionando uma dramática redução de custos em investimento e qualificação do professorado. Assim como na saúde mental, é mais fácil precificar valores de entrega segundo métricas retoricamente fabricadas, quando não se baseiam em técnicas de aprendizagem derivadas de coaches mal formados ou maquinaria digital. Os filhos tornam-se indefesos diante da soberba ignorância dos pais em matéria de educação, reproduzindo assim a extorsão crescente na saúde mental em torno da indústria do autismo e do TDHA (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). A maquiagem do produto educacional é um equivalente estrutural do discurso bio-psico-social: recusa da causalidade relacionada com a forma de vida, equivalência entre resultado e adequação, promessa de alta performance a baixo custo, barateamento de recursos humanos em troca da retórica digital e disciplinarização dos pais como consumidores e “colaboradores” (ainda que sem participação nos lucros). As horas úteis de professores, alunos e coordenadores se tornam um assunto de gestão exploratória, com cada vez mais funções sem nenhuma conexão com aumento de salários.
A reversão desse quadro não poderia ser feita sem um doloroso passo atrás. Saúde mental é dever e direito de todos, daí que tenhamos que retornar aos recursos disponíveis nesta matéria e que estão sendo soberbamente ignorados nestes últimos 40 anos. Uma escola escutadora é uma escola na qual há tempo para nomear o sofrimento e onde ele pode ser reconhecido antes de ser patologizado e encaminhado para algum especialista. Professores, coordenadores, funcionários e a escola não apenas como instituição, mas como comunidade, possui recursos de cuidado no território, como se diz em relação às políticas públicas de saúde. Isso não significa “especializar” ainda mais o professor e fazê-lo responsável por mais uma tarefa. Ocorre que essa é a categoria profissional com maiores índices de afastamento do trabalho, em função de transtornos mentais. É também o grupo de maior risco para burnout, ainda que se discuta a natureza clínica desse transtorno, e ainda que essa discussão esteja atravessada pelo interesse descaradamente ideológico de derrogar qualquer relação estável entre certas formas de estar no trabalho e certas formas de adoecer no trabalho.
Um fato conhecido daqueles que trabalham com saúde mental é que se esta se produz em conjunção com as políticas de subjetivação do território, em articulação com as estratégias das redes disponíveis e com variedade de táticas de cuidado, abertura temporal e experiencial para a escuta. Isso não só representa uma proteção para os alunos, mas também um benefício potencial para o cuidador. Uma vez que nos ocupamos de cuidar de quem cuida, que se disponibilize tempo para sua formação, para seu desejo na relação de pesquisa e de saber, e que a experiência de escuta não seja apenas um acaso mobilizado para exceções dramáticas, mas parte da vida comum e da desinstitucionalização da escola (que não significa submetê-la à família, mas de inscrevê-la do espaço público não apenas como um dispositivo de normas e de administração do saber, mas como uma comunidade de destino).
Argumentamos que toda escola já possui ou já possuiu sua escola de escutadores. Capazes de desenvolver o caráter histórico e narrativo do sofrimento, nos cursos de literatura e redação. Capazes de partilhar afetos nas situações de aprendizagem e para aprendizagem. Capazes de reconhecer situações, questões e problemas transversais que afetam a saúde mental, de forma a agir sobre eles, sendo os mais críticos o racismo, o assédio moral e sexual, a violência discursiva e os sofrimentos que não precisam estar indexados e reconhecidos pelos códigos jurídicos, laborais ou psiquiátricos, para poderem ser tratados, pela escuta, antes que se transformem em cartas cujos destinatários se apagaram e cujos remetentes não mais as conseguem ler.
Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia e do Programa de Psicologia Clínica da USP.