Era meu esse rosto – primeiro capítulo
ERA MEU ESSE ROSTO
O retrato não me responde,
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
Os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
Dos que restaram.
Percebo apenas a estranha ideia de família
Viajando através da carne.
Carlos Drummond de Andrade
Porque a primeira morte não é igual à última.
Julián Ana
1.
Depois de tantos anos estou no mesmo lugar. À minha frente a janela fechada impede a luz do sol filtrada pelo galhario das árvores. Um crucifixo de prata pendura-se a dois pregos por um cordão verde metálico ao lado de um pote branco sobre a guia de onde cai um fio comprido de planta carregado de folhas miúdas iguais a pele de rã. Um saco plástico na maçaneta de madeira guarda detalhes da abundante sujeira ao redor. A parede azul sobre a de pinho que nunca recebeu tinta cobre a superfície amortecida dos fatos.
Prova de fé deste lugar morto é a intangibilidade do espaço a arrastar as horas em panos de chão cinzentos, como as paredes internas hoje derrubadas, como as pilastras a segurar o que resta da casa. Meu avô contava que a madeira viera de Flores da Cunha quando Nova Trento, e era de lei, da que não se deixa carcomer. Intocável é o desenho das sombras suspensas nos muros solitários.
A cena enrijecida seca-me o corpo, imprime-se em mim achatando-me os braços, as mãos, o tórax e inteiramente todo o meu corpo até tornar-me a superfície que contemplo. Firmo os pés no vão entre o antes e o depois a controlar a fratura exposta deste nada na espessura de mil velas apagadas. Contemplo e registro. Ao lado, minha avó sobre o direito do corpo evitando apertar o coração respira sem forças de mover-se. Um colchão de molas sob um de penas são tempos entrecruzados dando um balanço maternal à cama. Pondero e descanso. Ou desisto nos braços do que um dia foi, do que seria, escutando o que rezamos antes de dormir. A voz é pano de seda a esvoaçar pelo quarto azul.
Cortina.
Escondo o que não sei de cor. A verdade não é mais que o movimento das sombras à procura de subterfúgios, o tom chiaroscuro destes anos acumulados uns sobre os outros e que vêm pesar como a insecável mancha de tinta, espessa como um soldado de chumbo em queda prestes a fissurar os ossos de um rosto. Será meu esse rosto.
Não será meu esse rosto.
Meu avô tonto da razão compreensiva das coisas cancela o descompasso com a vida sem esperar que eu venha vê-lo.
Nonno, me espera.
Não. Deixa que entrem as galinhas.
Permanece no asfalto o barulho dos carros na velocidade das coisas que não existem mais.
(Florescem os lírios na primavera. Minha tia sussurra ao meu ouvido, fui eu quem os plantou, e as rosas e o arbusto de azaleias brancas, olha. Ninguém imagina quem faria isso. Colhemos as flores, compondo um ramalhete desbotado, ninguém nos vê. Tenta esconder a emoção que a visão da vida provoca em sua alma de sal, contudo sei que também é feita da matéria úmida que a tudo vivifica e por isso se impressiona com a tex- tura sedosa das pétalas, papel japonês na superfície brilhosa de seus olhos tigrados atentos à confusão dos caules e o excesso de folhas. Se é um tigre ou um peixe é coisa que nunca pude decidir.
Pomos a oferenda diante da gaveta onde meu avô está enterrado. Não há letras sobre o muro revestido de concreto. Aqui fora o mundo é apenas um mau jeito de viver. E ali, onde ele jaz, não somos nós. Não deve ser fácil viver assim, é o pensamento que me surge como uma folha de papel vegetal onde eu poderia desenhar um sino a curvar-se nesta hora em que a escala da vida perde a tonalidade, pois que mortos não sentem mais nada, obriga-me a concluir a razão que desde cedo me domina provocando-me sonhos monstruosos, enquanto minha tia tem uma verdade bem mais simples que desliza como a lagarta concentrada em devorar sinais de esperança existentes nas folhas
Falta a fotografia.
Uma chuva fina umedece as lajes, o sol esmaecido cintila sobre as pedras como um pedaço de pano abandonado. Que tempo, é o tempo, o tempo. Tempo. A palavra se repete ensinando-me a não mentir.
Perdido entre as sepulturas, descubro a sucessão de datas que impede o descanso dos mortos.)
Como (11/06/2012) tem lançamento do Era meu esse rosto no Rio no POP e dia 28/06/2012 tem lançamento em SP no Espaço Revista CULT, decidi publicar aqui o primeiro capítulo do livro para meus leitores queridos.
(10) Comentários
Ansiosa à espera do meu exemplar para ler o 2º, o 3º, ……..
Beijos Márcia!
Gostei. Literatura de primeira grandeza.
Ontem li o último, hoje já estou com vontade de começar a ler de novo…Felicidade literária.
Olá Márcia. Ler o primeiro capítulo deixou-me com vontade de ler os outros. Espero pelo lançamento.
O mais engraçado foi que identifiquei muito esse texto com um que escrevi há uns 4 anos e que publiquei em um pequeno espaço que criei no ano passado. O conto chama-se A hora da estrela, se interessar.(Aqui, http://oficialdasletras.blogspot.com.br/2011/12/hora-da-estrela.html).
Incrível como as palavras e ideias circulam pelo universo e a escrita é universal e atemporal.
Abraços
Sim, onde fica a livraria do lançamento do livro ?
Obrigada pelo presente.
Que barato. Lembro de comentários teus em entrevistas, de que quando era criança, em Vacaria, tua tia te levava ao cemitério para visitar os falecidos. Deve ter sido uma grande viagem escrever estas memórias. Belo começo. São as fontes da tua juventude 😉
Estava viajando, ao chegar meu exemplar estava me esperando. Estou lendo, estou amando. Bjs
Muito gostoso de ler, é como uma dança…com a linguagem… sensível e inteligente! Parabéns!
Beijos Márcia!