Ademir acusa o amigo Valfrido de roubar-lhe o dinheiro em uma pequena empresa que tinham juntos. Valfrido rebate apontando o fato de Demi estar traindo-o com sua esposa. Lucielle se coloca contra Valfrido, apontando a violência do marido e até um possível assassinato. O enredo simples poderia estar encerrado em algum romance de banca, não fosse o formato diferente imprimido pelo escritor e designer Gustavo Piqueira em seu novo livro “Valfrido?”.

Ecoando a máxima de McLuhan, “o meio é a mensagem”, Piqueira materializou seus personagens nas ruas de São Paulo devido ao formato adotado para disseminar sua história: foram 10 panfletos distribuídos pelos bairros de Higienópolis e Santa Cecília entre os dias 29 de outubro e 5 de dezembro de 2015, que narravam a história do trio, cada vez do ponto de vista de uma das personagens. Cada um dos panfletos teve 9.000 cópias, endereçadas aos moradores da região. O remetente misterioso, somado ao aparecimento gradual de elementos da narrativa nas ruas de São Paulo, criaram uma incerta zona de desconforto entre os que liam os panfletos e não sabiam do que se tratava: peça publicitária, ficção, história real, teatro.

Um dos panfletos, por exemplo, trazia dona Elvira, uma suposta tradicional moradora da região de Santa Cecília que acusava Ademir e Lucielle de estarem praticando um golpe com aquela história dos panfletos. Mais uma camada de significados, que transportavam os personagens para um novo espaço impreciso, entre a realidade e a ficção. Tal qual um D. Quixote que, ao invés de caminhar pela Mancha, vai pelos flyers, panfletos e cartazes lambe-lambe conferindo nova significação ao tecido urbano. Uma confusão cognitiva que atenta, ao embaralhar símbolos tão cristalizados, a configuração pré-estabelecida da vivência das cidades.

Essa, aliás, é uma marca de Gustavo Piqueira. Dono do estúdio Casa Rex, já ganhou mais de 48 prêmios de design gráfico pelos seus trabalhos e mais de 350 prêmios pelo seu estúdio. Em muitos de seus trabalhos, ao misturar ficção, design e história, cria formas alternativas e controversas de questionar certos paradigmas e combater uma cidade já interpretada e fechada. É o que faz, por exemplo, em seu livro Marlon Brando, vida e obra. Além de se tratar de um Brando ficcional, distante do ator norte-americano, a capa trazia uma foto do ator James Dean, em uma intenção de criticar a redundância entre mensagem visual e escrita praticada pelas editoras.

Reflexões dessa espécie também entraram em Valfrido?. O 18º livro de Piqueira é dividido em duas partes: primeiro, reproduções dos 10 panfletos que contam a história de Ademir, Lucielle e Valfrido, além de diversas fotos das performances urbanas relacionadas ao enredo; em seguida uma grande divagação do autor. Nessa entram reflexões sobre a interação entre texto e imagem; pequenos trechos da história do design; o relato do processo de criação de “Valfrido?”, que começava a se esboçar quando o autor conheceu o serviço das malas diretas e da gráfica GIV; diversas memórias pessoais. O livro se encerra com um anexo dos 10 panfletos originais, como os entregues nas casas, e fotos do que restou dos cartazes de Valfrido rasgados pelas ruas de São Paulo. Um projeto que, apesar de dissolvido na forma dos lambe-lambes, sobrevive como forma momentânea de inversão simbólica (a panfletagem virou, por instantes, veículo do drama humano) e reflexão sobre diferentes narrativas tecidas a partir do emaranhado mundo civilizado.

 

CULT – Em “Valfrido?” você parece trabalhar com diversas camadas de realidade: personagens que vão da realidade para a ficção e vice-e-versa, como no panfleto nove em que Elvira transporta o casal para um novo enquadramento envolvendo um golpe. Como foi trabalhar essa ficcionalização da realidade?

Gustavo Piqueira – Agora que os leitores das malas diretas estão se manifestando, após finalmente terem descoberto do que se tratavam as entregas/peças de rua do ano passado, é bem curioso perceber o quanto o deslocamento do suporte narrativo, tanto em seu formato (do códice para folhetos) quanto em seu modo de entrega (por malas diretas e não adquirido em livrarias ou qualquer outro meio “autorizado” para a entrega de um texto ficcional) fez com que as pessoas realmente não conseguissem enquadrar uma narrativa simples, um folhetim dos mais básicos, como tal. E disso nasceu um tremendo vaivém entre ficção e realidade. Uma confusão que, no fim, se revelou a grande riqueza do projeto. Pois se as teorias sobre o motivo da entrega daqueles folhetos variavam — uns aventavam ser peça de teatro, outros candidatura política, ameaça pessoal, divulgação de produto, etc. — todas as hipóteses confluíam para um mesmo desfecho: o momento em que Valfrido surgiria “de verdade” para revelar a que de fato viera. Como se houvesse a certeza de que, inevitavelmente, a realidade mostraria sua cara ao final pois, se aquilo tudo fosse uma ficção, teria “se comportado” como uma ficção.

 

Quando você levanta o questionamento sobre o futuro do livro do papel, abre o panorama para novas possibilidades para o formato impresso, que, como você parece apontar, não faria muito sentido se continuasse a fazer apenas aquilo que o virtual dá conta. Você acha que o livro-objeto é uma saída, uma forma de conferir nova significação ao livro impresso?

Eu não diria especificamente livro-objeto, já que o termo define um modo específico na abordagem formal do livro. Mas sim, creio que o livro impresso cada vez mais evidenciará aquilo que tem de único frente ao digital. E isso nada mais é do que sua dimensão física. Acredito, portanto, que cada vez mais assistiremos a um crescimento no protagonismo do discurso formal e gráfico do livro impresso.

Você acha que o trabalho realizado em Valfrido? é uma forma de acender uma nova percepção do urbano, muitas vezes embotada pelo fluxo informacional contemporâneo?

Vejo mais como uma exploração de possibilidades desse território. Normalmente pensamos na ocupação do espaço urbano apenas em termos físicos, materiais. Mas é apenas um modo de fazê-lo, existem outros. E é através de diferentes ocupações que novas percepções se tornam possíveis.

Assemelha-se, nesse sentido, à figura típica do flâneur?

Talvez forneça elementos para que ele desperte, nem que por breves momentos.

Os locais em que as distribuições dos panfletos foram feitas têm relação apenas com a moradia dos participantes? Não envolve aquele sentimento “paternalista” e de “sadismo mórbido” que você relaciona a certas pessoas distantes da miséria?

O que motivou a delimitação da área de distribuição, inicialmente, foi de fato aquilo que coloco no livro, a necessidade prática de conseguirmos monitorar as entregas incluindo a mim e ao pessoal da Lote 42 no roteiro de entregas. Contudo, é claro que uma vez definida a área, seu perfil foi fundamental para a definição do universo da narrativa: nada como presentear uma área com tanta pose cosmopolita com disputas zero glamurosas como a briga por uma Kombi carreto, traições de fotonovela ou um golpe mequetrefe nos vizinhos.

Em diversas passagens do livro você apresenta uma visão bem crítica da sociedade, seja das consciências hiperestimuladas e anestesiadas, seja das tentativas, nas artes e na literatura, de superar essa condição moderna de forma pouco ousada e inovadora. Como você enxerga o panorama da arte atualmente no Brasil? Há muitos artistas em atividade pensando essas questões e reatualizando criticamente o passado?

As visões do livro, ainda que amplas, são particulares: não consigo generalizá-las ao ponto de considerar formarem um quadro mais abrangente das artes ou dos artistas. Penso, contudo, que vivemos em tempos bastante tristes, num cenário conservador e sectário em quase todos os lados para os quais olhamos —  e não apenas no “lado dos outros”, como confortavelmente costumamos nos consolar enquanto brincamos de ativistas no facebook. Contra essa autocondescendência, portanto, considero que embaralhar códigos pré-estabelecidos e forçar a mão no estranhamento sejam antídotos dos mais saudáveis.

Qual a função de uma arte como a sua, tão inseparável de aspectos corriqueiros e cotidianos da vida urbanizada?

Se tal função existe, não é elaborada como tal, não surge como um fim a ser alcançado. Mas há, sim, uma insistência no corriqueiro, no pequeno, no não-espetacular. Naquilo que John Ruskin chamou de dimensão do olho: algo que não pode ser visto nem com lentes microscópicas, nem com potentes telescópios: apenas com a escala do olho humano, em seu limite e alcance originais.

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