Entre grilhões e vendas

Entre grilhões e vendas
(Foto: Reprodução Banksy/ Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.


A liberdade é o grito de guerra da juventude, de geração em geração, saltando de lábio em lábio como um beijo intercambiado de pais para filhos, uma resolução impregnada no DNA desde o momento em que foi concebida. Em nome dela homens foram às guerras e mulheres marcharam sobre o sangue da história, estandartes diferentes sacudindo sob o mesmo nome. Mas como o DNA, a liberdade não é exatamente igual em todos, modificando-se aos poucos de corpo em corpo, com exigências novas, às vezes se deformando tanto que não reconhece a si mesma, a ponto de se perder no abismo do combate e se transfigurar no monstro que repudia.

Uma ideia bonita e complexa, a liberdade é, com toda a certeza, um dos mais dignos objetos de luta e de defesa. Foi em nome dela que se ampararam movimentos que permitiram a populações espoliadas se erguerem, e em nome dela muitos ainda se empertigam, sabendo, no entanto, que quem opta por trajá-la incondicionalmente sempre a verá refletida no espelho do futuro, mas nunca a vestirá no presente. E são as pessoas que enfim se veem trajadas em suas luzes que podem notar, surpresos, um grilhão atado aos seus pulsos.

Recentemente assisti ao documentário Why Beauty Matters, da BBC Two, no qual Roger Scruton expõe sua visão conservadora a respeito da arte, da arquitetura e da beleza. E eis o primeiro atrito. Em uma geração que tende a reprovar a palavra “conservador” com uma ânsia revolucionária, é desconcertante, em um primeiro momento, se ver concordando com preceitos defendidos pelo filósofo e escritor. E foi nesse momento que notei o pequeno grilhão da liberdade atado ao meu tornozelo.

A luta para alcançar a proximidade com a liberdade é tão intensa que muitas vezes nos vemos obrigados a concordar com o objeto de libertação incondicionalmente, como se fosse uma traição não o apoiar em todas as suas facetas, após tanto tempo de batalhas para que ele conseguisse sua posição sob a luz. Mas isso não seria o oposto do conceito? A liberdade não significaria, justamente, a permissão para se inclinar a valores liberais e conservadores igualmente, seguindo o que melhor corresponde aos seus sentimentos, desde que não se viole o direito de terceiros? Se não há escolha, se há imposição, estamos apenas presos em uma gaiola mais bonita do que a anterior.

Naturalmente, há temas mais sensíveis em que a liberdade não se relaciona a escolhas pessoais, mas a própria vida e dignidade humana, e a empatia não deveria permitir que ninguém se opusesse ao bem-estar alheio. Mas em questões menores e intrinsecamente pessoais, é incompreensível que nossas batalhas se consagrem em obrigações para os outros ao invés de abri-las para uma palheta de cores maior. Afinal, liberdade é livre-arbítrio – o direito de escolher.

Quando nos deparamos com a reluzente face da liberdade, notamos também as sombras onde ela não alcança. Enquanto o ser humano se envolve em suas batalhas pelo bem-estar e a vida, a maioria se esquece de que a liberdade pessoal é margeada pelas fronteiras do conceito bíblico e social do respeito ao próximo, ignorando que ele não se estende apenas à nossa espécie, mas àquelas com as quais convivemos e que foram, também, vítimas de abusos históricos e displicências políticas. Em uma época de pandemia, é essencial despir a venda que nos faz acreditar que somos entidades sozinhas no mundo e expandir a empatia para os animais os quais prendemos em gaiolas e isolamos de seus habitats para sanar nossa curiosidade, e para a natureza a qual gostamos de relutar pertencer.

Desafiando-nos a encontrar um equilíbrio entre extremos repressores e a olhar para as necessidades de nossos irmãos, a liberdade é cada vez mais uma pedra de gelo escorrendo entre as juntas de uma palma quente.

Giovanna Barsotti, 22, mora em São Paulo. É formada em Letras com Habilitação em Tradução e gosta de passar as madrugadas lendo e escrevendo.

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