Então poderia dizer saudade?
(Reprodução)
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de junho de 2020 é “quarentena”
Havia finais de tarde, como agora, em que eles banhavam de chuva. A água descia pela bica, uma calha velha que deixava o jato com uma cor marrom e de gosto amargo, ele e o vovô de ceroula, varrendo inútil um esgoto de lama. Banhavam, e banharam muito. Então poderia dizer saudade? De quê? E ele responderia de chuva, chuva, papai. E uma vida de saudade não é merecida. Ele sabia? Não, não sabe ainda. Peguei o telefone e teria que contar.
Meu filho é pequeno, mas não é mais criança. Tem dez anos e mínimos possíveis ele entende: passado, abandono, ser feliz, saudade, mas alguma coisa ele não sabe ainda. Vem de outra cidade para ficar comigo e os avós nas férias e finais de semana, às vezes uma hora ou duas. Era o que pensava, e a voz do outro lado:
“Quando eu estiver de férias, vou ficar muito tempo”, diz. “Muito tempo assim com você, vovó e vovô”, e conta repetidamente nos dedos da mão até achar suficiente o quanto vale a demora.
“Vai demorar um pouco até você vir”, explico. “Estamos isolados, sem abraços, sem beijos. Olha o vovô, ele…”
“Isolados?”
“Sim”.
Sem coragem de dizer, pergunto como andam as coisas na casa dele, os cachorros, a rotina, se tem visto os filmes que gosta. Ele vai mostrando o quarto com pôster do Homem-Aranha e um quadro do Rei Leão, os brinquedos, a colcha da cama desgrenhada. Fico quieto e ele se move com motivos, obrigado a essa distância e ao isolamento recomendado. Sinto uma recompensa seguindo-o pela casa, cozinha, varanda, sala, diz que vai ao banheiro, a conversa pausada, e fico sozinho, a tela do celular voltada pro forro.
“Vê isso, papai”, e mostra a janela de tempo cinza.
“E o que já fez hoje?”
“Absolutamente nada”.
“Saudade de nós? Do vovô?”
…
“Saudade da escola? Dos amigos? Como eles estão?”
“Como vou saber se não estou indo pra escola, papai”.
Não tem o número dos colegas, é criança para isso. É atributo beber sua voz como água, um eco sozinho a quatro paredes, distante 250 km, enquanto ele mastiga a saudade das coisas, morno entre os braços macios da mãe. É a voz estridente da família, mas sem cansaço ou tédio ou velhice; o rosto desmedido no pequeno aparelho quadrado, a forma dos olhos, o nariz, a curva da boca – uma curva de felicidade por esse tempo para ele incompreensível e maravilhoso. Como se parece conosco, um dia irão cair os cabelos, como o vovô?
Move-se austero, menos menino, mais homem, e fala das brincadeiras com o avô, um pião do xadrez que move errado. Sexta-feira à tarde e corre no parque, um pé firme na grama, e o outro? O outro espera e os olhos curiosos para uma bolinha azul brilhante que o ambulante joga bem alto com elástico. Compra vovô, compra! O lago, o piquenique, as mãos espalmadas, dois gansos comendo biscoitos entre os dedos da criança e do ancião. Uma mecha inquieta de cabelo na tela o deixa vivo agora.
“Sabe o que pensei? que tu podia vir aqui na minha cidade”.
“Ir como, já te disse…”
“Não, não, escuta primeiro, papai, depois tu fala: então tu pega o carro do vovô e vem, vem escondido pra não te verem”.
É possível, mas a rotina, a rotina daqui pra frente. Vou pausar o vídeo, um vendedor no portão, digo a ele. Dois homens de terno negro e máscaras e luvas – o medo do vírus – trazem arranjos de flores com cheiro de álcool, e os papéis do hospital para assinar, e minha mãe idosa e sozinha como está? Tirar móveis da sala?
“A gente pode combinar”, respondo, “vou organizar”, o celular na mão virado para parede. “Vai ser difícil, está proibido, mas é para o nosso próprio bem, entende?”
Fica calado, pensando, pensando em burlar ordens, e põe as mãos juntas bem perto da boca, para conter a ideia que lhe quer fugir. Eu me adianto:
“Já sei, e se construísse algo que pudesse estar aí assim tão rápido, pra estar aí agora, hein, pra gente conversar, agora só você, vovó e eu”, digo, e ele sorrindo do absurdo da invenção – não é mais tão criança assim. “Tu já está”, e sacode o celular, “está aqui, papai”.
“A minha ideia”, então começa a dizer, “é tu vir quando puder, quando passar tudo, vem morar comigo, entende? Quando for proibido sair de novo tu já vai estar aqui”.
O melhor é estar junto ou nunca separar, mas ele ainda é criança para entender. De novo, como explicar? E depois de tanta chuva com bica? Filho, às vezes as pessoas se separam, acontece quando… mas seria complicado e absurdo começar assim.
“Sim, sim”, afirmo, apenas para dar a certeza e um conforto.
Começa a escurecer aqui fora e do outro lado da tela o rosto dele numa silhueta, lá também é noite, noite do seu corpo sem abraço, do cheiro da pele e da saudade de um filho sem o pai. Fica atento, não pra mim.
“Papai, a cachorra, a cachorra”, diz assustado de felicidade. Umas vozes ao fundo do vídeo, pizza-janta-pizza-janta.
“Estou com saudade”, digo. “Olha, o vovô, ele…”
Mas deixa o celular jogado num canto, a tela virada pra cima, e vai embora. Corre – os calcanhares firmes no chão, como se aqui na minha cozinha – e a cachorra latindo, latindo como o diabo.
Diego Felipe Pereira Noleto é jornalista