Drummond universal
Leonardo Fróes
Em crônicas de quando mais velho, Drummond se disse um “tradutor bissexto” e definiu como “tradução jornalística” alguns dos trabalhos que realizou nessa área. Ao citar as passagens, na introdução ao volume de sua Poesia Traduzida, Júlio Castañon Guimarães refere-se a uma “dose de circunstancialidade” que há na produção do mestre, lembrando que a tradução para ele “de modo algum resultava de um projeto sistemático”.
De fato, as traduções de poemas por Carlos Drummond de Andrade, quase todas procedentes da década de 1940, foram colaborações publicadas em jornais e revistas, sendo agora recolhidas pela primeira vez em livro. A escolha de temas variados, fosse a Guerra Civil Espanhola ou a simples comemoração de um Natal, parece ter-se naturalmente imposto pela função utilitária já desde o início prevista.
Quer decorressem de encomendas, quer surgissem por iniciativa própria, com a intenção de divulgá-los no país, os poemas de 44 autores, traduzidos para publicação imediata e efêmera, sugerem textos pautados pela atualidade de então.
No Brasil daquela época, a arte de traduzir ainda andava aos tropeços. Seus melhores praticantes eram com frequência poetas, quando não diletantes, tateando à procura de caminhos. E um defeito contumaz na produção de livros era retraduzir do francês, ou do espanhol, a preço vil e qualidade ofensiva, textos originários de outras línguas, inclusive o inglês.
Mestre talvez seja o criador destemido que, situado e sitiado entre limitações e problemas, ousa ampliar o alcance de uma obra ao rematá-la com grandes toques sutis.
Um dos vários e ardorosos poemas sobre as lutas na Espanha, “Romance de Noite Triste”, de uma autora que se assinava só Isabel, sem sobrenome, termina assim no original: “El miliciano, en la noche, / alerta está y en su puesto”. Tradutor bissexto, Drummond, por volta dos 40 anos, já era, porém, o mestre consumado que deu mais força aos dois versos ao traduzi-los com uma pincelada de estilo: “O miliciano, na noite, / está no seu posto. Alerta”.
Essa tendência à concisão expressiva se evidencia em muitos outros momentos das traduções reunidas. A dada altura de “A Casa dos Mortos”, longo poema de Guillaume Apollinaire, Drummond descreve apenas como “Vestida de amarelo / Corpete preto / Fita azul e chapéu cinza” uma jovem que em francês aparece “Vêtue d’une robe jaune / D’un corsage noir / Avec des rubans bleus et d’un chapeau gris”. A supressão dos numerosos artigos e outros adereços dos versos deixa o modelo da jovem mais direto e atraente – e, aliás, bem modernista – na transposição enxuta feita para o português.
Do mesmo modo que a espanhola Isabel, muitos dos poetas presentes em Poesia Traduzida, como José Antonio Balbontín, Marie-Laure David, Carmen Bernos de Gasztold, Jane Merchant e Felipe C. Ruanova, nem sequer pelo nome são lembrados hoje. Outros, como Claudel, Edna St. Vincent Millay ou Coventry Patmore, chegaram a ser muito famosos, mas o interesse por eles decresceu a quase nada no tempo.
Nem sempre, pois, foi um material de primeira, como demonstra no todo a coletânea, o que o tradutor teve em mãos para cumprir seu ofício. Recorrer à inventividade, tentando aperfeiçoar o produto, terá sido nesses casos sua saída extrema.
Quando traduz grandes poetas, como Apollinaire, Heine, Brecht, García Lorca ou Pedro Salinas, o Drummond que se encontrava na metade da vida é um tradutor modelar. Com base em boas matrizes, criou textos de grande encantamento, até mesmo ao retraduzir por via indireta, a partir do francês, os autores de línguas que não sabia.
Engajado nas causas sociais, mais político então que nunca, o poeta também continuava lutando, no campo estético, pela recente revolução modernista ainda em fase de testes.
Na função de tradutor esporádico, é concebível que se identificasse bastante com proclamações libertárias como as de Apollinaire. Nessas, que avultam no poema “Colinas”, Drummond assume seu grande porte, falando pelo outro, mas com voz própria:
“É este o tempo da magia
Que está voltando preparai-vos
Para milhares de prodígios
Que jamais engendraram fábulas
Pois ninguém os imaginou”
Traduzir por via indireta não foi a única transgressão de Drummond a preceitos já tidos como sagrados na arte continuamente mutante da tradução literária.
Normal, magistral
Num conjunto de sete poemetos que fez, em 1963, para a revista Seleções, ele também se aventurou numa espécie de metatradução sem barreiras, prática antes condenável, por implicar infidelidade à fonte, mas que deixou de causar espanto nos tempos de permissividade e ecletismo que vieram depois.
Nesse conjunto de Seleções, poemas de sete autores e em diferentes formatos tiveram somente a essência, sua ideia geral, aproveitada. Todos os originais, independentemente da quantidade de versos que continham, foram reduzidos a quadras ou, como disse o metatradutor destemido, a “quartetos sábios”.
Até mesmo um soneto, do filósofo norte-americano George Santayana, lê-se assim compactado ou destilado em pérola. Como os produtos, a rigor, eram novos, seus títulos também são diversos. O sexteto “Praise Youth”, de Phyllis McGinley, transformou-se, por exemplo, no laboratório de Drummond, no quarteto “Jovens e Velhos”:
“Louvor aos jovens: declaram guerra
A mitos, ídolos, documentos.
Mas, derrubado o vaso de flores,
Louvor aos velhos – catam os fragmentos.”
Curiosidade à parte no livro ora lançado é a tradução do poema “Liberté”, de Paul Éluard, que em tempos de guerra, na França ocupada pelo invasor, repercutiu como hino. O título foi modificado para “Um Único Pensamento”. Mas a tradução é normal, ou melhor, é magistral, porque feita em parceria por Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Deve ter sido a única vez em que esses dois bruxos se juntaram para um trabalho do gênero.
Produzindo em separado, ambos se permitiram, como tradutores de
poesia, liberdades enormes e até libertinagens em relação aos padrões de sua época. Mestres em todos os formatos, foram também desbravadores de
uma revolução ainda em curso na tradução brasileira. A preço menos vil e qualidade crescente.
Leonardo Fróes é poeta, crítico e tradutor
Poesia Traduzida
Carlos Drummond de Andrade
Org.: Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães
Cosac Naify
448 págs.
R$ 84
Leia tambémDois outros livros de Carlos Drummond de Andrade saem no mês que vem, também pela Cosac Naify: Confissões de Minas e Passeios na Ilha. O primeiro, lançado em 1944, apresenta como tema as cidades mineiras de Itabira e Sabará durante as décadas de 1930 e 1940 e traz resenhas de críticos como Antonio Candido e Sérgio Milliet. Já o segundo, de 1952, traz textos do poeta sobre a relação do homem com a natureza, |
(3) Comentários
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Não existe tradução; o que existe é recriação. Obviamente, muitos já disseram isso antes de mim.
Não conhecia esta faceta de Drummond como tradutor de poemas e pelo texto deu pra perceber sua marca impressa naqueles que traduziu.
É sempre bom saber mais de Drummond.
Lindo texto: Drummond Universal, retrata a vida deste grande autor, da vida singela às portas escancaradas da crítica, com este ar ingênuo de um simples caipira de Minas, um brasileiro nato, que do seu sacrificio diário polia as letras e brilhava cada vez mais em corações duros como pedra, transformados em carne, macia, vermelha e viva…e que pulsa sempre e sempre, até na eternidade…
DRUMMOND E SUAS TRADUÇÕES: As traduções de Drummond têm algo de si, sua maneira particular de ver o mundo, parafraseando o poeta, seria melhor dizer sua maneira pessoal de ver a poesia: concisa, enxuta, na medida para “tocar” os leitores. É muito oportuna essa edição, pois não havia uma compilação da poesia traduzida por ele até então. As conhecidas traduções são os romances e textos teatrais com os quais o poeta se identificava: “Uma gota de veneno”, de Fraçois Mauriac (1943); “As relações perigosas”, de Chordelos de Laclos (1947); “Os camponeses”, de Honoré de Balzac (1954); “A fugitiva”, de Marcel Proust (1956); “Dona Rosita, a solteira ou a linguagem das flores”, de Federico García Lorca (1959); “O pássaro azul”, de Maurice Maeterlinck (1962); “Artimanhas de Scapino”, de Molière (1962); Fome, de Knut Hamsun (1963). O seu trabalho como tradutor também rendeu frutos em outras áreas: “Beija-flores do Brasil”, de Th. Descourtilz (1960). Na poesia os textos andavam esparsos, ora em exemplares de revistas literárias, na internet, em manuais de literatura. Com já disseram inúmeras vezes, traduzir é recriar, e Drummond era mestre nessa arte. Este lançamento vai preencher um espaço na bibliografia do poeta que foi chamado “consciência nacional”.