Donald Winnicott no Brasil em 2021
Donald Winnicott é o psicanalista da vida. Só quem conheceu como próprios os meandros produtivos da psicanálise, que ele chamava de fundamentalmente criativa, poderia dizer um dia que “a vida é mais importante que a análise”. Para ele, sem abrir mão da teoria do inconsciente que recebeu de sua tradição, a psicanálise sempre foi de fato vida. Tendo anos de análise pessoal com James Strachey, que se analisou com Freud em Viena, e de estudos com Melanie Klein, que se analisou por sua vez com Sándor Ferenczi e Karl Abraham, Winnicott soube fazer seu tudo aquilo que recebeu, bem como, em sonhos, Goethe propôs a Freud. Ao seu modo altamente idiomático, ele reinventou a psicanálise, o objeto cultural que tanto amava, no mesmo movimento em que a incorporou. E foi exatamente esta ética de civilização como criação que ele ofereceu aos milhares de crianças e bebês que teve no colo, durante cinquenta anos, em sua clínica psicanalítica pediátrica que acontecia no hospital público inglês. Talvez por isso elas transformassem de modo tão vivo suas dores e seus medos junto a ele, junto à sua zona de ilusão.
Passando por baixo e indo além de todo caráter contratual que estrutura grande parte da vida social da psicanálise no mundo, como Gilles Deleuze dizia sobre ele, sendo o primeiro a nos ensinar a “a ir até lá”, como o filósofo completava, observando, como também dizia Giorgio Agamben dele, o modo com que o objeto põe o humano para ser nele próprio, como os índios, as crianças e os artistas sabiam, Winnicott é, por estas e por outras, para muitos de nós, depois de Freud, o psicanalista dos psicanalistas. Com ele aprendemos a respeitar, e a desrespeitar, todo o cânone ao mesmo tempo. Passamos a pensar, ou melhor, a viver, em um mundo “entre os mundos” e a partilhar, em suas palavras rigorosas, a origem temporal do simbolismo.
Pensamentos, experiências e concepções de clínica diretamente “inspiradas” nele foram os de Marion Milner, M. Masud Kahn, Margaret Little, Jean-Bertrand Pontalis, Christopher Bollas, Harold Searles, René Kaës, René Roussillon, Adam Phillips, entre tantos. Jessica Benjamin e Axel Honneth o estudaram bastante e o consideraram, ambos, como uma espécie de último limite de uma teoria ética e ontológica, desde a psicanálise, do reconhecimento: o mundo fundante de um humano como ser político e de cultura. Ele próprio tinha um vínculo de afinidade eletiva especial, de pai para filho inconsciente poderíamos dizer, com o pensamento do então bem censurado da psicanálise Sándor Ferenczi, com o qual entrou em contato através de seu amigo psicanalista Michael Ballint, analisado por Ferenczi e guardião do mítico “diário clínico” do genial discípulo húngaro de Freud.
No Brasil, seu trabalho frutificou como em poucos centros da psicanálise de hoje e deu origem, entre outros, ao inspirador pensamento de Gilberto Safra, altamente humanista. O meu próprio trabalho com a Clínica Aberta de Psicanálise, e nosso grupo analista, nosso coletivo de psicanalistas sociais na Casa do Povo em São Paulo, só pôde existir porque em 1930 Winnicott se ajoelhou com uma criança em um corredor de hospital em Londres e eles desenharam juntos belas figuras, enquanto ela lhe contava seus sonhos… A Clínica Aberta se sustenta articulando uma série, aberta, inventada pelo paciente, de “consultas terapêuticas”, a poeticidade psicanalítica muito especial do encontro único, verdadeiro mundo clínico descoberto por Winnicott.
Certa vez Rodrigo Naves me disse desconfiar que os “objetos relacionais” de Lygia Clark tinham inspiração e base no objeto e fenômeno transicional de Winnicott, que ela teria aprendido na época diretamente em Londres, quando morou lá… Perto do fim da vida, Winnicott nos contou sobre um clube de amigos que lhe aparecia em sonhos, no qual costumava se encontrar e conversar com C. Gustav Jung. Ao mesmo tempo, ele nos mostrava todo o valor do “sem sentido” em psicanálise; enquanto pedia a Mohammed Masud Khan que fosse com a sua roupa de cavaleiro atender uma moça anoréxica que amava cavalos…
Há pacientes lacanianos como há pacientes kleinianos. Pode-se rastrear os termos da teorização freudiana em todas as suas coordenadas e conceitos e fazer ainda mais mil e um mapas dos grafos de Lacan. Mas qualquer coisa do tipo perde o principal em Winnicott, o momento fulgurante de um acontecimento em psicanálise, disse dele Pontalis. Psicanalista do potencial, dos “mundos sem fim”, ele inverteu o valor e o sinal da ideia ocidental de ilusão e nos mostrou um pouco como “viver o paradoxo”. O paradoxo para Winnicott: verdadeira fonte de devir, antes de julgá-lo como qualquer modo de significação ou de significante. Por isso ele foi lido por alguns com Espinosa, por outros com Heidegger, e com Merleau-Ponty, quando foi de fato apenas um psicanalista pediatra que partilhou sonhos, e brincadeiras, com crianças. E com bebês, que adoravam o seu snack bar, a sua lanchonete, como ele chamava seu consultório no hospital, onde eles devoravam a espátula de prata, e voltavam à vida em seu colo.
Médico de aldeia, mesmo que a aldeia fosse Londres, diferente do mestre político Freud e da necessidade espetacular de reconhecimento de Lacan, só viemos a saber tudo o que ele era e tudo o que pensava após a sua morte. Definiu sua obra prima clínica, o “jogo do rabisco”, como “o jogo sem nenhuma regra”. Porque “o analista que não sabe brincar não sabe analisar”, e a vida é mais importante que a análise, “esta forma altamente civilizada que o século 20 inventou de… brincar”! Pode? Por saber brincar e por amar tanto a psicanálise, que o fez tanto quanto ele a fez, foi mesmo o animador da vaquinha entre os psicanalistas ingleses que instalou a estátua de Freud, de Oscar Nemon, em Swiss Cotage.
Salve Winnicott, nosso guia e bom sonho, analista da potência criativa que tomou a vida ocidental como cultura, e como contra-cultura!…, até outro dia. O brincar e a realidade é o duplo, interior da psicanálise, desde a clínica, do radical e utópico discurso político, desde a cultura, que foi Eros e civilização. E nem Marcuse, nem Winnicott, rigorosamente contemporâneos, ouviram falar um do outro enquanto levavam a psicanálise na mesma direção. Ofereço esse ensaio, este estudo e retrato, Winnicott, experiência e paradoxo, a todos os meus amigos que mantêm o humano vivo e íntegro, deste ou daquele modo, de todos os modos, de todos os mundos, nestes tempos tristes de pobreza psíquica, mercadoria como sujeito e violência como cultura. Tempo em que homens do sonho, do reconhecimento, da criação e da democracia, como Winnicott, são tidos por inimigos.
Agradeço muito à Florencia Ferrari, e aos amigos da Ubu editora, que me deram a responsabilidade feliz de acompanhar com esta apresentação e ensaio a sua nova e fundamental coleção Donald Winnicott. E agradeço a todos os colegas que estão presentes em mim. Estou disponível para conversar com quem quiser falar sobre este livro, que foi escrito para todos. Evoé, DWW.
Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.