Dois

Dois
Em setembro, convidamos nossos leitores a refletir sobre o que nos conecta (Arte: Cynthia Gyuru/Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de setemrbo de 2020 é “conexão”.


Ela o observava de muito longe, de muito perto. Sorria até os músculos faciais não suportarem a tensão provocada pelo presente lampejo de alegria. Contabilizava cento e enésimos dias de estacas fincadas ao mesmo chão.

Quinze e trinta e seis. Conexão quatro gê.

Ele: Amada. Tenho algo para ti: um conto da tarde.

Ela: Quer contar?

Sua conexão é instável, dizia o aparato eletrônico. Instantaneamente, a rede invisível caiu. Ele sentiu a brisa que entrava pela janela esquerda do apartamento. Sorriu. Terminou de estender as roupas, as histórias e os desejos no varal. Fazia muito calor de um contraditório inverno. No pátio, crianças brincavam e desmascaravam-se sob os olhares atentos do sol. Risco iminente de morte, amor e liberdade, pensou. Sentiu vontade de andar, despido de vestes e de si, dando a cara a tapa ou ao vento. Saiu, pôs-se a caminhar, enxergando em cada rosto a poesia escondida, os dizeres silenciados. Eram os olhos nos olhos, máscaras nas máscaras, medo no medo, e nada mais. Tudo mais. Saiu sem hora para voltar. Sem dia? Sem tempo. Aos seus ouvidos, tilintavam os metais dos ganzás adormecidos pela tragédia histórica. Seus pés descalços pisavam em chão molhado de terra batida. Chovia uma chuva lilás, fina, de água morna e salgada. Água que trazia paz. Por que foi mesmo que saí? Um pacote de milho para pipoca, ovos vermelhos, as asas… avistou o casal. Aquele casal. Fingia gostar do caldo de cana, porém, gostava mesmo era do casal garapeiro. Desde a infância, lembrava de jogar o caldo de cana goela adentro para preservar a relação de amizade sincera. Detestava aquele doce alucinante, amava a breve companhia daqueles seres. Leva mais um pouco. Não, obrigado, não quero. Levou. Com sacola e tudo. Distraído que era, esqueceu-se de que lutava contra a existência das sacolas plásticas feito guerreiro muito fiel à natureza. Há distinção entre ser humano e natureza? Naquele instante, estava a preocupar-se mais com a aparente sabedoria das árvores e a peculiaridade dos sabores doces, azedos e amargos da existência. Por vezes, chegava a conclusão de que era tudo sobre o mesmo tema. Continuou sua andança. Tinha uma flor no meio do caminho. Tinha uma flor, uma pedra e um ipê amarelo. Não se lembrava do seu pequeno objetivo de saída. Tinha? Criou ambientes e florestas e imensos vasos floridos de dentro para fora de si. Tinha a mania de enxergar beleza onde não parecia existir. Conseguiu alçar pequenos voos enquanto caminhava. Do alto, cumprimentou o velho contador de histórias que morava na rua sabe-se lá qual era mesmo. Bruscamente, pousou. A memória. O chão molhado. O milho. Os ovos. As asas? Que horas eram? Onde estava? Onde esteve? Lembrou-se dela. Sentiu amor. Lembrou-se das roupas, das histórias e dos desejos que ficaram no varal. Tentou tomar o caminho de volta. Não conseguiu. Continuava observando as crianças redemoinharem-se ao sol, sentindo a brisa, agora mais forte, que continuava entrando pela janela esquerda, lugar de onde percebia não ter saído.

Quinze e trinta e oito. O apito do aparato eletrônico. A realidade. Realidade? Seu pacote de dados foi renovado. Você pode existir por mais três horas. Ou trinta e três minutos, depende da intensidade, dizia novamente a voz algorítmica.

Ele: Meu bem. Caiu. Você está aí?

Ela: Acho que sempre estive. E achei lindo o momento em que a chuva de cor lilás caía sobre você enquanto voava.

Habitavam o mesmo espaço-tempo transcendente, conectados em meio ao caos. Transeuntes das redes a poetizar o inimaginável. Funâmbulos caminhando sobre a própria existência.

 

Amanda Schmitz, 31, é atriz, palhaça e arte educadora. Aventureira da escrita e das musicalidades. Moro em São Paulo e é uma das fundadoras do Grupo Desembargadores do Furgão, coletivo teatral que pesquisa a linguagem das máscaras.

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