Do tipo à tela

Do tipo à tela

A presença física do livro e o debate sobre qual será sua feição na era digital estão em duas obras que contam a história do design gráfico

Josélia Aguiar

Ante as inúmeras notícias sobre o novo Kindle (da Amazon), o Reader (da concorrente Sony), sua réplica chinesa e uma possível versão brasileira, é quase um alento para leitores fiéis, divididos entre a desconfiança, a curiosidade e o pavor com as novas tecnologias, encontrar nas livrarias duas novas obras sobre design gráfico. História do design gráfico é uma obra clássica de Philip Baxter Meggs, somente agora traduzida para o português, que perfaz de modo panorâmico, porém bastante competente, esse percurso de milênios. É traduzida de sua última edição, revista e ampliada por Alston W. Purvis, discípulo de Meggs. O outro lançamento é BiblioGráfico, de Jason Godfrey, livro que encontra um modo singular de narrar o design gráfico dos séculos 20 e 21: a partir da biografia de cem livros clássicos sobre o tema, um deles o de Meggs.

A presença física do livro é o assunto que sobressai nas duas obras. A primeira reúne 1.300 ilustrações, grande parte relacionada à edição de livros; a segunda reproduz capas e páginas de todos os títulos selecionados, num total de 630 ilustrações. A trajetória que o leitor percorre, em ambas, é repleta de pormenores: fontes, texturas, formatos, cores, linhas, composições, técnicas se sucedem, com seus devidos personagens, episódios e tempos. Mapear aquilo que define esta era digital – considerando, aqui, o que será ou poderá deixar de ser impresso um dia – é preocupação partilhada pelos autores, para quem conhecer a tradição é fundamental para conformar o futuro.

Para além da história do livro

História do design gráfico saiu pela primeira vez em 1983 e, desde então, mereceu reedições sempre ampliadas. Meggs era um designer e professor norte-americano preocupado com o desconhecimento que seus alunos tinham de história. Certo dia, reuniu em livro o material que havia pesquisado durante décadas para dar aulas. Sua narrativa tem, assim, clareza suficiente para agradar a um público além daquele formado por estudantes ou profissionais da área. Após a morte de Meggs, em 2002, ao discípulo Alston W. Purvis coube a tarefa nada simples de rastrear, selecionar e caracterizar a nova geração de designers que interagem com o computador e criam formas para o que será visto e lido nas telas. Trata-se de uma época em que se encontram tanto coisas excelentes quanto coisas medíocres, inovações sem precedentes e outras que não passam de projetos mal concebidos e toscamente elaborados, como descreve Purvis.

A história que Meggs e Purvis contam segue a invenção da escrita, a passagem da tipografia grega para a romana, as iluminuras celtas e os manuscritos árabes, o surgimento da fotografia, o art nouveau, o art déco e, depois, a Bauhaus, a revolução do design editorial e corporativo, até alcançar a era dos computadores, com tipos feitos de pixel. Não é apenas uma história do livro, mas também de anúncios, cartazes, embalagens, selos e logomarcas, revistas e capas de disco. Sobretudo é a história de como se organizou o conhecimento, a cada época, por meio de formas visuais e táteis – e olfativas, podem dizer os mais apaixonados –, sob influências sociais, estéticas, econômicas, técnicas e tecnológicas. A diferença deste para qualquer outro livro sobre história do design é a abrangência – com suas mais de 700 páginas, grande o suficiente para conter tudo que é relevante, sem ter a dimensão de uma enciclopédia de vários volumes. Alguém poderá dizer que seu enfoque é essencialmente ocidental, mas não parece ter sido pretensão dos autores ampliar seu horizonte, apesar de capítulo inteiro e longas passagens sobre a influência do Oriente.

Personagens e episódios para além de Gutenberg e sua primeira Bíblia impressa – até hoje uma edição esplendorosa – sobressaem no relato de Meggs e Purvis. Há Aldo Manuzio, impressor que inventou o protótipo do livro de bolso já no século 15; William Blake, poeta e gravador, célebre tanto pelos versos quanto por suas iluminuras no século 18; Didot, Bodoni, Garamond e outros inventores de fontes que se tornaram metonímia; Aubrey Beardsley, William Morris, Hans Christiansen, Jan Tschichold e, mais recentes, Carol Twombly e Robert Slimbach, apenas para citar alguns dos muitos criadores que borraram os limites entre arte, oficina e publicidade. O design gráfico, consolidado como disciplina e profissão, só existe há um século. Apesar de reunir heranças de áreas distintas, surge com esse nome apenas em 1922, quando o editor de livros William Addison Dwiggins assim designou a atividade de alguém que traz ordem estrutural e forma visual à comunicação impressa.

A particularidade do acervo

O inventário que o designer e bibliófilo inglês Jason Godfrey faz em BiblioGráfico é particularíssimo, e aí reside sua graça. De sua biblioteca, selecionou os livros preferidos. Os que não possuía, mandou pedir emprestado. Reproduziu capas e páginas significativas e escreveu textos de não mais que cinco parágrafos descrevendo o teor, contando um pouco da história e explicando a relevância de cada obra. Na introdução, diz que não teve a intenção de traçar toda a história do design, nem de fazer uma lista definitiva. Pela necessidade de ter boas reproduções, preferiu obras publicadas após a Segunda Guerra. Em seis seções, entre exemplares raríssimos e outros muito recentes, seguem-se então obras sobre tipografia, livros de referência, didáticos, histórias, antologias e monografias – uma ordem inspirada naquela das bibliotecas.

Está lá, como já se disse, a edição de 1983, a primeira, do livro de Meggs, apontado por Godfrey como “insuperável” e “o primeiro de qualquer lista” dos alunos da área. Obras iconoclastas como The end of print ou O fim da impressão publicado em 1995 por David Carson, que “pratica um design que se choca frontalmente com muitas convenções, em que ênfases e hierarquias são viradas de cabeça para baixo”, como diz Godfrey. E há também novas obras mais pacificadoras, como Maeda@media, de John Maeda, um designer obcecado por programação, com formação no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), que pensou em criar um programa de computador para diagramar as páginas automaticamente, mas concluiu que não daria certo. Na definição de Godfrey, trata-se de um livro de mídia digital que, como poucos, consegue “traduzir a luminosidade, a interatividade e a multidimensionalidade”. O livro de Maeda é de 2000. O curto intervalo de tempo entre as três edições citadas – 1983, 1995, 2000 – dá uma medida da velocidade com que as mudanças têm ocorrido.

BiblioGráfico – 100 livros clássicos sobre o design gráfico
Jason Godfrey
Trad.: Cid Knipel
Cosac Naify
224 págs. – R$ 99

História do design gráfico
Philip B. Meggs e Alston W. Purvis
Trad.: Cid Knipel
Cosac Naify
720 págs. – R$ 198

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