A dimensão perdida

A dimensão perdida
(Foto: Bob Sousa)

 

 

Fotos de Bob Sousa.

Cada homem traz dentro de si toda uma época,
do mesmo modo que cada onda traz dentro de si todo o mar.”
Jean-Paul Sartre, The purpose of writing.

Dirigida por Marco Antonio Rodrigues na SP Escola de Teatro, Gagarin way é uma peça-antídoto. Contra uma pauta que se arroga o direito de ser única em determinadas esferas da criação artística. Contra uma certa militância intelectual não mais aberta às contradições e à pluralidade do mundo. Contra uma modalidade de discurso bem pensante, eticamente responsável, inócuo e de retórica vazia que tem invadido a cultura dos espetáculos. Contra um tipo de teatro político feito recentemente nos palcos paulistanos que se tem levado muito a sério. Contra a chatice de algumas montagens, que, sob o afã de lutarem contra a ideologia dominante, transformam-se em meros instrumentos de pregação para convertidos.

Escrito em 1998 e levado à cena pela primeira vez no Festival de Edimburgo em 2001, o texto de estreia do dramaturgo escocês Gregory Burke está assentado sobre dois princípios básicos: a reunião de um conjunto de ideias e de sentimentos cujo prazo de validade parece ter vencido logo após a queda do muro de Berlim (a partir desse espectro, a atualidade do texto está garantida) e a expressão dessas mesmas ideias e sentimentos, ou melhor, da sua obsolescência, por meio de um tipo de humor cáustico que, se mantém os personagens aprisionados dentro de um eletrizante jogo no qual tudo seria aparentemente dramático se não fosse essencialmente patético, convida os espectadores a exercitarem sua consciência crítica por intermédio dos poderes libertadores do riso. Sim, porque Gagarin way é uma comédia. Uma comédia dos erros que talvez se defina pela expressão com a qual o filósofo e crítico britânico Terry Eagleton batizou seu último livro lançado no Brasil: a de uma esperança sem otimismo. (Vale notar como a Grã-Bretanha de Burke e Eagleton é pródiga em formulações linguísticas que fazem uso daquele tipo de humour crítico que tanto fascinava Immanuel Kant.)

(Foto: Bob Sousa)

Esgotados física e mentalmente pelos modos vorazes de exploração do capitalismo mundializado, os amigos Gary e Eddie planejam sequestrar e matar o gerente japonês da fábrica de produtos eletrônicos escocesa onde trabalham, querendo com isso chamar a atenção do mundo não somente para os efeitos nocivos que a globalização causa nos trabalhadores locais, como também para a necessidade do protesto e da revolta. Um jovem estudante de ciência política que ocupa ali provisoriamente a função de segurança da fábrica, Tom, é envolvido indiretamente na ação. Ocorre que, quando Gary chega com a vítima, descobre ter capturado na verdade Frank, o consultor de negócios da fábrica, que é escocês. Vale a pena manter o plano? A ação, agora, surtirá o mesmo efeito? Há diferença entre uma execução levada a cabo em nome de ideais políticos elevados e um crime comum?

A maestria do texto reside na articulação entre os dois planos de que se abastece o enredo: na linha de frente, digamos, no plano da realidade, o espectador acompanha com muito interesse a série de ações voltadas ao sequestro, dispostas sob a forma de um thriller policial; já como pano de fundo, digamos, no plano da memória, os personagens evocam uma série de experiências, vividas por eles direta ou indiretamente, ligadas às lutas que a esquerda travou ao longo do século 20, da guerra civil espanhola à greve dos mineiros britânicos que durou dezesseis meses, entre os anos de 1984 e 1985, passando pela onda comunista que se espalhou pelo vilarejo proletário escocês de Lumphinnans, em Fife (onde se passa a ação), a ponto de uma rua do lugar ser batizada em homenagem ao primeiro cosmonauta a viajar pelo espaço.

(Foto: Bob Sousa)

Vale notar a existência de um terceiro plano, que, a fim de mantermos a blague, poderia ser chamado de plano da alucinação. Trata-se do telão ao fundo da cena em que se projetam ora as mensagens motivacionais que a companhia dispara para seus funcionários, ora os intertítulos da própria peça, todos retirados da vasta obra de Jean-Paul Sartre, o filósofo, escritor e dramaturgo que é o paradigma do intelectual engajado (sobre quem, aliás, Eddie e Tom começam a conversar dando início à trama): O ser e o nada, O muro, As moscas, A idade da razão, A engrenagem, A náusea, Sursis e As palavras.

Tais intertítulos estariam a serviço dos matizes emocionais vividos como dilemas ideológicos pelo trio de trabalhadores subalternos da obra (isto é, a transcendência da consciência, a condenação à liberdade, a realidade do mal, as ranhuras da moralidade, as controvérsias da luta, as angústias do homem diante de um mundo desprovido de sentido, o sentido da vida em sociedade e a postura de um escritor que faz da loucura seu moto-perpétuo) ou funcionariam apenas como nomeações espirituosas, resvalando no puro nonsense, dada a desregulagem de registro que há entre as obras de um eminente filósofo e a divisão interna de uma peça em que tal filósofo é citado quase que anedoticamente?

(Foto: Bob Sousa)

A encenação de Gagarin way comprova que um bom texto ou um bom projeto dramatúrgico funcionam a partir de alguns elementos essenciais: uma direção inteligente, a presença de intérpretes talentosos e um uso criativo que se faça do espaço cênico – coisas que a referida montagem tem de sobra. Marco Antônio Rodrigues imprime um dinamismo às cenas, cujo ritmo marcado, típico de uma peça de ação, não dissimula em momento algum tratar-se também de uma peça de ideias. A vasta experiência do diretor em encenações nas quais a tessitura política é uma forma que se precipita em cena (e não um discurso que se enfia goela abaixo do espectador) garante a extração rica, complexa, variegada, dos inúmeros sedimentos do texto.

Flavio Tolezani, Fernando Nitsch, Rafael Losso e Laerte Mello desempenham seus papéis com a devida verve que a empreitada exige. Seguros no domínio das falas e na composição corporal dos personagens; entregues ao ato de investigar a verdade que define, de modo muito particular, cada um deles; dispostos a converter tal verdade, a rigor, em lenda dessa verdade, pela via da ironia e do humor. Há que se destacar naturalmente – dada a especificidade de seu personagem – a atuação de Fernando Nitsch, que, passando ao largo do histrionismo mais simplório, confere a Eddie uma intensidade corporal, uma avidez vocal e um arrebatamento de espírito impressionantes, que pautam em boa medida a condução do espetáculo. Por fim, a cenografia de Márcio Medina transgride a banalidade de um objeto cotidiano que, multiplicado em cena, transita entre o utilitário e o alegórico.

(Foto: Bob Sousa)

Emulando a filosofia de Jean-Paul Sartre, Gagarin way trata do enfado diante do mundo como uma experiência fundadora, ao revelar ao homem o ser como gratuidade ou pura indiferença. Indiferença que Gregory Burke brinca de ser patética apatia. Todos nós vimos experimentando isso também no Brasil pós-ditadura. A liberdade e a paixão. A busca da liberdade e o desafio da história. A sensação de futuro perdido (segundo a acepção de Raymond Williams). Assim mesmo, como frases nominais coordenadas, fragmentárias, a denunciar, no mundo contemporâneo, a falta de conectivos entre as coisas. E de processos. E de nexos. E de contiguidade. E de consecutividade. E, por extensão, do senso de comunidade.

A grande qualidade do texto – que diretor e intérpretes, na encenação, compreendem muito bem – é tratar o caleidoscópio político, que espelha e reflete muitos ismos (marxismo, anarquismo, existencialismo, terrorismo, niilismo), pelo viés de um estado de ânimo todo especial. Que retira do teatro político a gravidade cerimoniosa que não lhe faz bem, ao mesmo tempo que oferece ao espectador a possibilidade de enxergar as coisas de um ponto de vista peculiar, original, diferentemente dos outros homens. Um espetáculo em que o espectador sai com a cabeça fervilhando de ideias e impactado pelo frenesi da representação é tudo aquilo que se espera de uma arte que é puro jogo. No qual a esperança que depositamos no surgimento de uma nova sociedade não contradiz a gratuidade de sermos otimistas.

(Foto: Bob Sousa)

GAGARIN WAY
SP Escola de Teatro – Sala Vange Leonel (4º andar)
Praça Roosevelt, 210 – Centro, São Paulo
Sexta, às 21h; sábado, às 18h e 21h; domingo, às 18h
Entrada franca
Duração: 90 minutos
Classificação: 16 anos
Até 25 de junho

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.


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