Devaneios
(Ilustração: Marcia Tiburi/Revista Cult)
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de fevereiro de 2021 é “sonho”.
A locutora de voz aveludada anuncia John Coltrane.
E os seus acordes aliviam a minha noite insone.
Distraidamente, faço círculos com a ponta dos dedos no piso amadeirado do quarto.
Até me lembrar que debaixo da cama pode haver seres que me puxarão para o além.
Recolho o braço dependurado, achando graça das fantasias infantis que ainda me rondam.
A melodia de Coltrane segue.
Penso em filmes.
Em Preto e branco.
Noite.
Mulheres de tailleur, chapéu e luvas.
Thor começa a latir.
É o caminhão de lixo que vem longe.
Thor é um Shih Tzu que mora no quintal junto a outros dois cães.
O dia todo leva bronca do seu dono.
Acho que a sua rebeldia é por se considerar merecedor de algo que vai além do quintal.
Estou num buraco cujas paredes de terra estão cravadas com símbolos que desconheço.
Alguém se aproxima e esfrega pedras no meu peito.
“Por que me machuca?” — pergunto.
“Porque estou cumprindo ordens.” — responde alguém que não vejo.
“De quem?”
Me remexo no lençol enrolado.
Já passa das 2h, e eu cochilo e sonho.
Cochilo e sonho.
De braços dados, percorríamos as ruas da vila em que morávamos.
Ríamos de alegria, ríamos do barulho esquisito do salto do seu sapato no chão de pedra.
O vento soprava forte e levantava a minha saia pregueada.
Eu ria.
Você não.
Quando se irritava com os meus passos lentos, seguia adiante.
Eu gritava pedindo pra me esperar.
Até te alcançar e te perder de novo.
Te alcançar e te perder de novo…
Marly Magalhães, 62, Osasco, SP. Apaixonada pelas palavras