Desvio no trajeto

Desvio no trajeto
Em setembro, convidamos nossos leitores a refletir sobre o que nos conecta (Arte: Cynthia Gyuru/Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de setembro de 2020 é “conexão”.


Chamei um motorista de aplicativo (não vamos citar nomes) para me levar para casa em um dia muito frio. Estava garoando, uma neblina fina, o dia já havia amanhecido, mas ainda estava escuro. Em dias frios, a noite pode sempre querer roubar um pedacinho do que já devia ser dia. O motorista era daqueles caladões, que dão apenas “bom dia” ou “boa tarde” ou “boa noite”, confirmam seu nome e o destino. No rádio uma música tocava
muito baixinho e eu nem conseguia entender o que estava tocando. De vez em quando chiava e as vozes baixinhas ficavam distorcidas.

O caminho era relativamente curto. Lembrei que há muito eu não andava de carro, há muito também não ando de ônibus, de olho na estrada, ouvindo uma boa música no fone de ouvido. O meu maior prazer em andar de ônibus ou carro era poder ir olhando pela janela com o fone de ouvido no volume máximo. E na maioria das vezes eu gostava quando o trajeto era longo. É bom não precisar conversar e, mesmo sem ouvir música
alguma, sinto-me confortável nessa curta viagem com um completo estranho que parece nem estar ali enquanto eu também posso ficar quase invisível aqui atrás.

– Moça, o meu GPS está dando algum problema, acho que é a conexão com a
internet que está falhando. Droga, era pra ter entrado naquela. Você se importa de me mostrar o caminho?

De repente eu percebo que mal respiro, que meu coração bate tranquilo, meus olhos estão brandos e não sinto a necessidade de mexer nenhum músculo do corpo. O interior do carro está quente e seguro, de onde eu posso observar tudo lá fora sem congelar de frio ou ficar irritada pela garoa no rosto. Estar apenas cortando a cidade, sem me sentir parte dela, uma observadora encapsulada que não emite opinião. Nunca passei por essas
ruas, talvez eu nem saiba voltar para casa daqui.

– Desculpe, eu realmente estou com problemas de conexão com a internet. O
destino é a sua casa? A senhora pode me indicar para onde seguir? É que eu não sou daqui da cidade.

O meu celular provavelmente está descarregado. Bateria viciada. Talvez essa seja a maravilhosa e quase desconhecida sensação absurdamente prazerosa de não estar com pressa. A rua está molhada, o trânsito está tranquilo para o padrão da cidade, os comércios estão abertos e molhados porque centenas de pessoas entram e saem com seus guarda chuvas ensopados. Meu pé está gelado, como sempre. Apatia pode ser angústia enrustida.

É bom prestar atenção nisso.

– Acho que agora deu certo. Fica indo e voltando.

É, algumas coisas são realmente recorrentes para algumas pessoas. A insônia, a sensação de perda ou de vazio que não se explica de maneira palpável. A vontade voraz de açúcar, droga muito perigosa e sorrateira. Pensar em maneiras de ganhar dinheiro. Imaginar lugares bonitos para conhecer. Pensar em quem a gente ama. Desejar o seu beijo. Relembrar o seu cheiro. Emanar meu amor daqui até que ele chegue aí onde você está.
Coçar os olhos ou algum tique nervoso ou uma mania bizarra. Bocejar. A hipótese do desligamento. A impossibilidade.

– A gente deu muita volta, agora estamos meio longe. Mas eu encontrei o caminho de volta. A conexão estabilizou. Não dá pra confiar 100% na tecnologia, né?

Caminhar devagar. Pensar naquilo. Correr. Não pensar em nada. Não, isso não. É maluco como a nossa cabeça produz pensamentos absurdos e coloca eles em uma letra neon piscando bem na altura dos nos nossos olhos. E a única maneira de se livrar deles é olhando para aquela luz até os olhos arderem e finalmente ele desaparece.

– É, moça, eu não vou conseguir chegar. Deu queda de conexão de novo. Parece alguma interferência, não sei. Se você não souber me explicar o caminho eu vou pedir para você descer e solicitar outro carro.

Acho que agora eu estou escondida. Além dos satélites do governo, ninguém sabe onde eu estou. Mas estar escondida é diferente de estar perdida. Estar apenas explorando um lugar novo também é outra coisa. De repente a gente vira a esquina e voilà: a estaca zero.

– Moça, por gentileza, eu não vou repetir pela quinta vez para a senhora descer do meu carro! Eu reembolso a sua viagem. Sai da porra do carro!

Eu detesto com todas as minhas forças a garoa cortando o meu rosto. Afinal, que horas são? 1% de bateria. Sem rede.

– Com licença, senhora. A senhora sabe que bairro é esse? Eu não sei voltar para casa e estou sem sinal de internet.

Tessi Ferreira, 22, mora em São Paulo. É artista (atriz, palhaça e escritora) e estuda Ciências e Humanidades na UFABC. Faz parte de um grupo teatral chamado Teatro de Trincheira e do grupo circense Trupe Las Manas.

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