Despertar

Despertar
Foto: Lubo Minar/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Vem, vamos andar pela casa. Topei com um caderno antigo, meio copo de água, uma planta morrendo. Água na planta. Rodopiei pensando em leituras, mas nada. Meu corpo não tem nenhum efeito sobre os objetos da casa. A rigidez. Se eu olhasse por muito tempo para a mesinha onde guardo as revistas, se eu de fato dedicasse um olhar religioso à madeira, se me escondesse atrás da estante e espiasse com a cautela de uma santa. Nada acontece. Da janela vejo as folhas da bananeira pendendo contra o tempo; contra esses quinze minutos de céu manso rosa azulando. Um cachorro late, bem-te-vis me visitam de longe respeitando o isolamento social. Penso: sim, fiquem aí, que é um péssimo momento para estar perto dos humanos. A quarentena dobrou meu amor pelos pássaros e minha aflição às mariposas. Desencanei daquela questão: “quero tanto rezar, mas não sei para quem” e agora dias rezo todos os dias assim mesmo sem interlocutor. Os sanhaços não se abalam. Estou a cada dia mais distante. As maritacas festejam os mesmos acontecimentos diários, repetitivas. Tenho medo de tudo, o tempo inteiro. Outro dia veio uma coruja, chorei. A folha da bananeira já tem outra cor sob este novo céu de bom dia, sabiás. Às vezes também não sinto pavor algum e tudo parece facílimo, mas talvez seja o meu flerte eterno com a ambiguidade. Não vejo uma pomba há três meses e quatro dias, mas imagino que elas ainda existam. Se não fosse o frio, mal saberia sobre este corpo, sobre este peso pela casa: pés nos tacos, boca nos copos. O passeio longo do assobio até a janela. Ainda estamos aqui.

Talissa Lopez, 23 anos, é de São Paulo, formada em Letras pela USP e estudante de Psicanálise (Escola Brasileira de Psicanálise, Lacan) – às vezes cercando uma palavra ou outra; sempre cercada por umas tantas.

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