“Despertar é impossível”

“Despertar é impossível”
(Foto: Clément Fromentin)

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Em O despertar: dormir, sonhar, acordar talvez (Autêntica), a psicanalista argentina Carolina Koretzky revisita a teoria dos sonhos em Freud e Lacan e discute como o fenômeno onírico moldou as teses sobre a constituição do aparelho psíquico e desafiou as fronteiras entre fantasia e realidade na clínica psicanalítica.

Loucura embora, tem lá o seu método”. Quando Freud cita Hamlet em A interpretação dos sonhos (1900), ele sugere que, sob o aparente devaneio, o sonho mantinha vínculo com a realidade. Como essa tese desafiaria o estatuto científico do sonho no início do século 20?
Toda cultura e civilização tentou teorizar esse fenômeno absolutamente universal. Vemos no Antigo Testamento a presença do sonho. Sabemos como, na Antiguidade, o sonho assumiu um valor premonitório e oracular. Conhecemos o lugar que o sonho teve nas guerras, por exemplo. Atacava-se uma cidade, de acordo com o que um sonho dizia, segundo os intérpretes de sonhos que acompanhavam as campanhas militares. Na Idade Média, o sonho terá um caráter demoníaco, o lugar de onde os mortos voltam, de onde os demônios atacam.

O que vai acontecer a partir dos séculos 18 e 19 será uma contrarresposta ao caráter supersticioso do sonho por meio de uma posição científica, hiper-racionalista. Esse hiper-racionalismo tirou do sonho todo o seu caráter de sentido, e o sonho passou a ser puramente uma manifestação fisiológica, cerebral, uma descarga cerebral.

Quando Freud aborda o problema da interpretação dos sonhos, haverá uma seção inteira em que ele revisará todas essas antigas teorias até a posição cientificista mais extrema. Homem de seu tempo, Freud chega ao século 19 com todo esse caráter de esvaziamento de sentido do sonho. Todo o seu trabalho será, portanto, o de introduzir uma verdade no sonho – uma verdade inconsciente, que nos escapa.

Há algo no sonho que vai contar uma verdade oculta para o próprio sujeito. Há algo de loucura no sonho, mas também no sentido de revelação de verdade. A teoria freudiana do sonho tem um caráter absolutamente inédito na história do pensamento – uma teoria inédita do aparato psíquico do sujeito, ou seja, o sujeito tem, em si, um ponto de loucura que o atravessa e sobre o qual ele nada sabe, e o sonho revela aquilo que lhe escapa.

O sonho, em Freud, seria uma espécie de experiência de psicose, uma disputa sintomática entre desejo e recalque. O que sonho e psicose têm em comum e o que os faz diferentes?
Há um ponto que separa a psicose do sonho e a psicose como manifestação patológica, que tem a ver com a função do despertar, de que tanto falo no livro. É verdade que há uma espécie de loucura no sonho, porque ali o sujeito não tem poder crítico. Entra-se em universos absurdos dos quais se participa sem instância crítica. Podemos pensar o sonho, talvez, como um delírio. A diferença será a função de despertar: quando o sujeito acorda, na maioria das vezes, diz: “O que foi isso? Este é um universo absurdo”. Esse corte é o que funciona, normalmente, entre o mundo onírico e o mundo real. Nos casos mais patológicos, o despertar pode não produzir o corte brusco entre os dois universos.

Para Freud, o sonho é um trabalho de remodelação, de formação de compromisso entre um desejo proibido, reprimido, e o trabalho de censura para que esse desejo seja desfigurado, para poder – essa é a principal função do sonho para Freud – seguir dormindo. O sonho é o guardião do sono, age para não sermos incomodados por esses desejos. Nos nossos sonhos, também incluímos todos os elementos que nos perturbam, mas os incluímos para continuar a sonhar, para continuar a dormir.

Desperta-se para continuar a dormir, tese que percorre grande parte do ensino de Lacan, não deixa de ser freudiana. Ambos pressupõem um desejo de sonho ou, ainda, do não despertar para a realidade. A psicanálise, na sua procura por uma realidade escamoteada na fuga do sonho, seria uma oposição ao desejo de dormir?
Poderíamos nos perguntar se a análise busca de fato um despertar. Poderíamos dizer que sim, há, em certa medida, a busca por um despertar, mas ao mesmo tempo não ignoramos que o despertar é impossível.

A psicanálise vai se distinguir de todas as correntes ou doutrinas, às vezes religiosas, que buscam um despertar como último recurso, como certas correntes do budismo, por exemplo. A psicanálise parte do fundamento ou pressuposto de que o despertar é impossível e que o máximo que podemos obter é o encontro com um ponto do real, que nos desperta.

O que desperta, na psicanálise, não é a realidade. Freud e Lacan mostram que a realidade é um meio para seguir sonhando, ou seja, há um momento de encontro do sujeito com um real que nos desperta, com um elemento fora do imaginário da ordem, às vezes um elemento do próprio trauma – e esse encontro produz um momento de despertar. Mas como Lacan formaliza (é uma tese freudiana), isso acontece para continuarmos sonhando, para seguirmos dormindo na realidade.

E a questão, de fato, é: como fazer? É a grande questão. Tendo em conta que há apenas um encontro fugaz com a realidade, como orientar uma cura até um despertar? Isso não quer dizer que, por ser o despertar impossível, não é ele que vai nos guiar. Há uma espécie de paradoxo, uma contradição no próprio cerne dessa tese, ao dizer que vamos nos orientar pelo real, sabendo que o despertar é impossível, porque nos defendemos do real. Ninguém pode viver no real. É o paradoxo de que trata este livro.

Como o princípio do prazer de Freud e o desejo de dormir estão articulados?
Há um texto muito importante de Freud chamado Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), em que ele vai explicar precisamente a relação do sujeito com a realidade. Aqui, aparece o conceito do princípio do prazer.

Esse texto me parece muito interessante pelas consequências éticas que tem em relação à psicanálise, porque Freud explica bem que o sujeito, para continuar a relação com o prazer, vai em direção à realidade. Fundamentalmente, não há um princípio de realidade que venha substituir o princípio do prazer, o que implicou uma orientação psicanalítica terrivelmente normativa.

Se a orientação é que o sujeito se adapte à realidade e pare de sonhar, isso dá uma direção de tratamento totalmente adaptativa. Por fim, parece-me que Freud, nesse texto, é muito claro quando diz que é para seguir o princípio do prazer que o sujeito passa pela realidade. Parece-me que o sonho também ensina muito sobre essa relação entre o princípio do prazer e a relação com a realidade.

A constituição do sonho, em Freud, será resultado de um conflito entre o desejo do prazer e o trabalho de censura. Como essas duas instâncias operam na formação (des)figurada do sonho?
A explicação metapsicológica que Freud dá à interpretação dos sonhos é muito importante, quando ele distingue o conteúdo manifesto e o conteúdo latente do sonho, mas também o trabalho do sonho e o trabalho de interpretação. Aqui, aparece a frase que tantas vezes ouvimos de Freud, quando ele diz que o sonho não julga, não pensa. Ele se limita a trabalhar, a produzir uma figuração que não é transparente para o próprio sujeito. O caráter enigmático do sonho tem a ver com a censura. Freud também explica que, quando a censura falha em seu trabalho, o sujeito desperta.

O sonho de angústia foi um dos primeiros elementos que veio, de certa forma, pôr obstáculos à teoria principal do sonho. Freud diz que o sonho é a realização de um desejo. Assim, a primeira oposição, o primeiro obstáculo, será o sonho de angústia. Como pode alguém acordar por causa daquilo que esse próprio sujeito produziu no sonho? Esse é um grande paradoxo do sonho. Podemos dizer que estamos sonhando com algo que finalmente acabará por dar fim ao próprio sonho. É uma questão enigmática. Freud responde a esse obstáculo precisamente com esse ponto: o sonho é produto da acomodação entre um desejo e uma censura. Contudo, há momentos em que a censura falha em disfarçar o desejo inconsciente proibido, e nesse momento o sujeito acorda, desperta para evitar o horror que o encontro com esse desejo produz em si.

A teoria do sonho é fundamental porque permite a Freud elaborar a teoria de um aparelho psíquico dividido em instâncias e mostrar que o sujeito não é o “eu” que se pensa, não é o sujeito filosófico, não é o sujeito que tem uma verdade sobre si mesmo – é um sujeito que nem conhece a sua própria verdade.

Lacan questionará essa proposição de Freud segundo a qual o sonho não “pensa”. O que ele propõe?
A frase inteira deve ser levada em consideração. O sonho não pensa, não julga, não calcula, disse Freud. Dessa forma, não há produção de juízo, não há pensamento do tipo que julgue alguma coisa. Ele diz que o sonho se limita a trabalhar, a produzir figurações. Para quê? Para seguir dormindo.

Quando Lacan retoma essa questão, considera o sonho uma produção linguística, uma produção de palavras. Nesse caso, poderíamos dizer que há pensamento no sonho, no sentido de ser uma mistura de imaginário e simbólico. Mas, fundamentalmente, Lacan vai enfatizar o seu caráter de frase: o sonho é uma frase que se tenta dizer. Então, de certa forma, há pensamento.

Para Lacan, o despertar é uma salvaguarda do desejo, quando o seu fim está ameaçado pela satisfação da demanda. Desperta-se para que o desejo não cesse. O que essa proposição explica sobre a relação entre sonho e desejo em Lacan?
Lacan é, de certa forma, absolutamente freudiano quando diz que acordamos para continuar sonhando. O que Lacan faz, me parece, é usar termos como despertar, adormecimento, sonho para extraí-los do mundo puramente onírico e aplicá-los na relação do sujeito com a realidade.

Então, nós acordamos de que maneira? Acordamos por um encontro contingente com algo que não esperávamos, com as surpresas de nossas próprias formações do inconsciente, por exemplo. Há momentos de desidentificação abrupta que podem produzir momentos de choque para o sujeito. Lacan diz que há um instante de encontro fugaz, instantâneo, desse tipo de encontro, mas para continuar sonhando, o que Lacan chama de fantasia. Isso mostra o tipo de relação que o sujeito tem com o real e com a realidade.

Isso me parece um passo suplementar de Lacan em relação à teoria dos sonhos. Porque quando ele diz que acordamos para continuar sonhando, ele não está se referindo apenas ao sonho, na medida em que o fenômeno onírico se refere ao sonho como nossa relação com a realidade e com a representação do desejo.

Lacan dizia que os pesadelos eram pouco considerados pelos analistas. Como a teoria psicanalítica tratou a contradição imposta pelos sonhos “indesejados”, que desafiam a teoria dos sonhos como desejo?
É preciso lembrar que Freud tem duas grandes teorias sobre os sonhos. Há a primeira teoria, da qual falamos, do sonho como resultado do conflito entre um desejo e uma censura. Mas Freud não se limitou a essa teoria. O fenômeno da angústia nos sonhos permitiu-lhe continuar avançando na compreensão do aparelho psíquico. A partir de 1919, Freud será chamado a intervir nos debates sobre a questão dos soldados que voltam da Primeira Guerra Mundial em condições pós-traumáticas. Nessa época, em torno de Freud, um grupo de psicanalistas, que trabalhavam, sobretudo, em hospitais militares, começaram a receber sujeitos com um conjunto de quadros e sintomas ligados a fatores traumáticos.

O que esses psicanalistas escutam são seus pesadelos, seus sonhos traumáticos. A maioria dos psicanalistas tentava entender os sonhos dos soldados com base na teoria inicial do sonho de Freud. Mas, em artigos escritos entre 1915 e 1919, Freud vai dizer que aquela teoria dos sonhos já não serve mais. E isso marca, também, a postura ética de Freud, como pesquisador que não aplica o que já se sabia. O que já sabíamos sobre o sonho, seu caráter infantil, edipiano e reprimido do desejo, não se aplica ao que estamos vendo, diz Freud.

Surge, então, toda uma teoria complementar do sonho, em que não há conflito entre sistemas. O sonho não seria o produto de um conflito entre sistemas inconscientes e pré-conscientes. É o retorno, no sonho, de algo que permanece inassimilável, de algo da ordem do que não pode ser assimilado pelo sistema psíquico e que retorna e insiste. Esse caráter inalterável do sonho reproduz a situação traumática. Não estamos no mundo da fantasia, da figuração.

Lacan vai dar mais importância a essa teoria do despertar e do sonho, na qual dentro do próprio sonho pode haver um elemento que nos acorda, mas que não tem nada a ver com um desejo reprimido, e sim com um ponto que não pode ser elaborado pelo sujeito. Há algo que retorna no sonho e mostra que há um limite no simbólico, na capacidade de representação.

Em sua pesquisa sobre relatos de sonhos de ex-prisioneiros de campos de concentração, há a observação de que, quando se está preso, sonha-se com um futuro de liberdade; quando se está em liberdade, sonha-se com o passado de cativeiro. Essa incapacidade de elaboração do trauma explicaria esses sonhos de angústia?
O que fiz foi ler testemunhos, sobretudo de escritores, como Jorge Semprún, Primo Levi, Charlotte Delbo e Imre Kertész, que trataram dos sonhos durante o tempo concentracionário e pós-concentracionário. E o que me apareceu foi esse paradoxo de que você fala.

O horror está no campo de concentração, e os sonhos revelam algo da ordem do desejo. Ao mesmo tempo, não se deve esquecer que os prisioneiros diziam que acordar era terrível naquele contexto, porque logo após ter sonhado com comida, banquetes, reencontro com a família, acordar os trazia de volta ao mundo terrível do campo de concentração.

O que percebi é que a maioria dos que saem do campo de concentração, que se reencontram com suas famílias, que comem o que querem, que encontram proteção, tem sonhos pós-traumáticos. Não são apenas sonhos de angústia, são sonhos traumáticos, em que há um elemento do campo de concentração que retorna, como naquele sonho de Primo Levi, no qual ele acorda com a palavra de ordem em polonês para se levantar.

Existe algo do sujeito que nunca sai do campo de concentração, apesar de ter encontrado um certo conforto. Há um elemento em excesso, poderíamos dizer, em relação às capacidades de elaboração simbólica. Há algo que não pode ser dito, há algo que não pode ser representado, há algo em excesso, há uma lacuna na trama simbólica.


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(1) Comentário

  1. Carolina Koretzky, nos coloca frente a um novo olhar conceitual sobre a teoria dos sonhos de Freud a Lacan que faz muito mais sentido, com mais mais clareza teórica para a contemporaneidade. Excelente texto!

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