Desejo e capacidade de pensar

Desejo e capacidade de pensar

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de maio de 2021 é “desejo”


Desejar não é pecado. Diria mesmo que desejar é inevitável, nascemos desejando: primeiro o leite da mãe, que permitirá nossa sobrevivência, depois o calor materno, que possibilitará nosso desenvolvimento psíquico.

Entre o desejo consciente e o consumismo desenfreado vai uma grande distância. O primeiro advém da nossa capacidade de pensar e fazer escolhas, mais ou menos sensatas, em acordo com nossas possibilidades financeiras, por exemplo. Já o consumismo implica em não pensar, trata-se muito mais de compulsão, ação automática. Como uma criança que, ao entrar em uma loja de brinquedos, deseja tudo.

Nisso consiste o amadurecimento psíquico para aqueles que chegam, de fato, à vida adulta: a capacidade de pensar. Vejo a propaganda na tevê de um carro esportivo lindíssimo e me pego desejando aquele objeto. (Este, de resto, o objetivo do chamativo anúncio.) Disponho de dinheiro suficiente para comprá-lo, avalio custo e benefício, me dirijo à loja e compro; a escolha é minha, sem culpa ou qualquer julgamento moral. Se não disponho de recursos financeiros, aceito com tranquilidade tal condição, continuo dirigindo meu carro velho. Ambas as atitudes denotam o que chamo, singelamente, de capacidade de pensar.

Não possuo o dinheiro, mas o desejo em mim é irrefreável: realizo a negociata que tinha em mente; desvio dinheiro da merenda escolar; assalto um banco; roubo o dinheiro; pronto, agora posso comprar o carro dos meus sonhos. Estas são algumas possibilidades de solução que implicam em não pensar, próprias do mecanismo eu quero, eu posso, pura onipotência infantil. (Quanto mais radical a solução, maior a probabilidade da existência de um componente psicótico atuando como fator determinante.)

Nem todo desejo, felizmente, é da ordem do concreto. Esta é outra característica da vida adulta. O desejo de se educar, por exemplo, na concepção mais ampla do termo, é legítimo, elogiável, vale o esforço de uma vida inteira porque não tem limites: vivemos para aprender! E quanto mais nos educamos, maior nossa capacidade de pensar e fazer escolhas mais ou menos sensatas.

Pela segunda vez, nesse curto texto, utilizo-me da expressão mais ou menos sensatas. É bom lembrar que o inconsciente existe, é poderoso e atua permanentemente em nós, faz parte de nós, até mesmo durante o sono, quando então sonhamos. Não esperemos de nós mesmos constante e definitiva sensatez. O animal está sempre presente. O erro é inevitável, e com ele a oportunidade de mais aprendizado. Se podemos pensar…

 

 

 

André Luiz Vianna, 74, mora em Brasília, DF. É médico, PhD pela
Universidade de Londres, professor aposentado da Universidade
de Brasília, e psicanalista formado pela Sociedade de Psicanálise
de Brasília, filiada à IPA.

 

 

 

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