A derme do teatro

A derme do teatro
(Foto: Bob Sousa)

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Fotos de Bob Sousa

Baseado no romance de Jeferson Tenório lançado pela Companhia das Letras em 2020, O avesso da pele é o primeiro espetáculo do Coletivo Ocutá (formado por Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto) e o terceiro a ser dirigido por Beatriz Barros. Não obstante números tão incipientes, trata-se de uma das realizações mais impactantes dos últimos tempos na temporada teatral paulistana, impulsionada não somente pela grande qualidade do romance sobre o qual a experiência dramatúrgica está assentada, mas também pelo nível de elaboração e maturidade de tudo aquilo que é apresentado em cena. E talvez o mais importante: sem perder o frescor, a vivacidade, a energia e o direito ao risco próprios de criações artísticas iniciantes.

A relação da peça com o livro de Tenório priva de uma espessura que chama a atenção: o arco narrativo do romance está integralmente preservado no espetáculo, assim como a maior parte das falas advém da própria escritura do autor (salvo engano, as mudanças mais expressivas são a inclusão de um poema de Tatiana Nascimento no episódio que trata da dificuldade de relacionamento entre os pais do protagonista e a plena autonomia que o mote da aula sobre Crime e castigo adquire em cena, na qual o humor dos intérpretes, a criticidade do discurso sobre a educação e o quixotismo da figura do professor excedem com muita verve o modo sucinto como tal cena aparece no livro). Entretanto, é visível a autenticidade da empreitada cênica conduzida com tanta firmeza, seja pela direção, seja pela atuação dos quatro atores, seja ainda pelos demais elementos de que se vale a montagem (cenário, figurino, iluminação, preparação corporal e direção musical) – o que se poderia configurar como um bem-sucedido exercício de transposição de linguagens cujo resultado não é bem uma adaptação e, sim, uma transcriação.

(Foto: Bob Sousa)

Muito provavelmente a chave de tal êxito resida na forma como o espetáculo se apropria de ambas as metáforas contidas no título do romance – a pele e o avesso –, um binômio bastante perspicaz tanto em sua transparente provocação, como em sua dolorida ironia. Se no romance há um movimento ambivalente de aprofundamento da discussão racial exercido no nível da pele das palavras (a linguagem utilizada por Jeferson Tenório – clara, precisa, transparente – equivale a um tipo de epiderme sui generis cuja porosidade lança o leitor vertiginosamente na derme da violência sistêmica, e ainda assim errática, que ceifa, cotidiana e tragicamente, a vida de muitas pessoas negras no Brasil), no espetáculo tal movimento contrastante entre a superfície e a profundidade se dá pela fricção entre as palavras do texto e os próprios corpos dos intérpretes, trabalhados em cena como hipertextos. Em Jeferson Tenório, a pele das palavras resiste bravamente ao lançamento das histórias das vidas pretas no poço sem fundo do esquecimento ou da desfaçatez, denunciando tal alijamento; no espetáculo, a pele dos corpos dos intérpretes é a pura presentificação da beleza, da destreza, da resiliência e da dor. (Enquanto escrevo este texto, um grande portal de notícias me informa que uma criança negra morreu baleada pela polícia no Rio de Janeiro e que um homem negro foi tratado por policiais como um assaltante à porta de sua própria casa na Bahia. Talvez o arremedo a Fernando Pessoa me ajude a sair do torpor: minhas mesmas indignações são coisas que me acontecem?). Na dimensão da literatura, o filho vai em busca da memória do pai, e o leitor o segue na contiguidade do discurso da ficção; na esfera do teatro, o espectador confronta-se diretamente com a memória da pele. Com a memória da pele negra, cuja eloquência reside em sua própria tridimensionalidade. Que grita em cena.

Daí o avesso ser a outra metáfora expressiva tanto no romance como na peça. Metáfora essa que empreende uma luta encarniçada contra a naturalização da violência a que as pessoas negras são submetidas no país desde que foram escravizadas. O avesso se opõe ao “lado direito” das coisas, que a ficção da branquitude se empenha em defender como verdade. O avesso é o contrário das meias-verdades proferidas por essa branquitude. Que nada mais são do que mentiras absolutas. É a falha. O modo enganoso como os brasileiros usam sua própria pele, vestida pelo avesso. Os tons de branco invisibilizando os tons de preto; a derme negra – capilar, epitelial, estruturante – sendo abafada diuturnamente pela epiderme branca. Ou quase branca. Que é pura superfície.

(Foto: Bob Sousa)

Para além do belo trabalho de dramaturgia, sob a responsabilidade de Beatriz Barros e Vitor Britto, há que se enaltecer também a direção musical do espetáculo exercida por Felipe Oládélè, que trabalha em estreita colaboração com a direção de movimento e preparação corporal, a cargo de Castilho. As composições corais são sempre impactantes, e os corpos dos intérpretes vibram, ambiguamente, pela música ou por si mesmos, seja em alegria, seja em dramaticidade. A coreografia da personagem do professor flagrado em agudo paroxismo é impressionantemente bem realizada. E bela em seu comovente silêncio de inquietude. A concepção e a criação do desenho de luz de Gabriele Souza estão atentas o tempo todo à variação entre os registros épico, cômico, trágico e dramático, convidando os corpos em cena a mergulharem em tais atmosferas e serem delineados, com muita expressividade, por elas. O figurino de Naya Violeta e a cenografia de Wanderlei Wagner fazem as coisas em cena transitarem para a esfera do acontecimento. Balaclavas e livros, por exemplo, ganham uma dimensão especial. Elas, como objetos-abjetos; eles, como objetos-dejetos. A cena inicial, quando os corpos dos atores irrompem de onde o espectador menos espera, é um exercício cenográfico de pura inventividade.

Neste início de agosto de 2023 – somente cinco meses depois de O avesso da pele ter estreado no Sesc Paulista, onde cumpriu uma temporada muito concorrida, e menos de um mês após ter realizado outra temporada igualmente disputada e bem-sucedida no Tusp –, nos damos conta da imensurável beleza do disco que Xande de Pilares dedicou à obra de Caetano Veloso, revisitada, revigorada, revirada pelo avesso do samba.

O avesso da pele, o livro e a peça, fazem parte desse momento muito especial da vida política do Brasil, em que é preciso colocar as coisas de cabeça pra baixo. E examiná-las sob outras perspectivas que não as do discurso dominante. E não as tocar com a ponta dos dedos. E, sim, colocar o dedo nas feridas abertas de nossa tessitura social. Desde que o samba é samba deveria ser assim.

(Foto: Bob Sousa)

O AVESSO DA PELE

Dias 11 e 12 de agosto
Sexta-feira, às 20h; sábado, às 19h
Teatro do Sesc Santo André – 302 lugares
Rua Tamarutaca, 302 – Vila Guiomar – Santo André
Duração: 90 minutos
Classificação: 14 anos
Ingressos: R$ 40, R$ 20 e R$ 12

Dias 17 e 18 de agosto
Quinta e sexta-feira, às 15h e às 20h30
Feira Internacional do Livro de Ribeirão Preto
Galpão Sesc – 60 lugares
Entrada franca

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.


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