De manifestação em manifestação, o Brasil vai se desconstruindo como nação
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de setembro de 2021 é “manifestação”
A palavra manifestação assume sentidos positivos muitas vezes, como algo que provoca rupturas sociais ou contribui para promover mudanças significativas na sociedade.
Na vida cotidiana as manifestações suscitam divergências entre as pessoas, como os eventos que acontecem por meio de barreiras nas estradas para defesa de direitos básicos de uma comunidade ou os movimentos de invasões e ocupações de espaços públicos e privados.
Mas há eventos sociais que não recebem o atributo de manifestação, mas que mudam a ordem social de uma dada época, alterando os rumos da história de um país.
É sobre esses eventos que vou fazer um exercício de memória histórica, como cidadão, para resgatar as manifestações de poder e de ordem que interferiram sobremaneira na vida dos brasileiros durante a nossa existência histórica.
A primeira manifestação que vem à memória é a Carta de Pero Vaz de Caminha. Nela o colonizador revela para a corte portuguesa o que havia de riquezas nos recursos naturais da nação brasileira e inaugura uma jornada de saque transcontinental que dura até hoje.
Depois veio o célebre Dia do Fico, no qual um português se manifestou preocupado com o destino do Brasil-Colônia e declarou que permaneceria por aqui para ajudar na construção nacional. Tempos depois, a promessa manifestada com um “Diga ao povo que fico” não se consolidou, e o colonizador português abandonou para sempre as terras brasileiras.
Mas antes de abandonar o Brasil, Dom Pedro I, o português do parágrafo anterior, ainda foi protagonista de outra manifestação, também célebre, por meio do grito “Independência ou Morte”, que segundo ele ratificava a separação entre os colonizadores portugueses e os colonizados brasileiros. Mas aquela declaração (ou manifestação) não se concretizou em ações efetivas, pois os brasileiros tiveram de continuar lutando pela independência do Brasil de setembro de 1822 a julho de 1823.
D. Pedro I, ainda, na condição de imperador do Brasil, constituiu o poder Moderador, que estava acima dos poderes tradicionais do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Iniciava-se aqui a política do “manda quem pode”…
Depois de se cansar de tanta manifestação, D. Pedro parte para Portugal.
Com a ida de Dom Pedro I para Portugal, emerge outra manifestação histórica: a declaração de maioridade de D. Pedro II ainda no início da adolescência. Como um país poderia ser regido por um infante? Esta é uma pergunta para um trabalho de arqueologia histórica.
Anos mais tarde, foi promulgada a Lei Áurea, uma manifestação que visava conceder direitos aos homens e às mulheres advindos das terras africanas. Resultado? A Lei Áurea tem mais de dois séculos de existência, porém a população afrodescendente até hoje luta pela equidade quanto aos direitos básicos de cidadania.
Apenas um ano depois da Lei Áurea, outra manifestação histórica sobreveio: a da Proclamação da República. Os militares se aproximariam do poder e não o abandonariam mais.
Anos mais tarde, uma parcela da população brasileira foi às ruas em defesa da pátria, da ordem e da família, e o Brasil mergulhou em outra manifestação chamada de “Revolução de 1964”, um golpe militar, político e empresarial, que até hoje traz repercussões para a nação brasileira.
Mas as manifestações por golpe de Estado não terminaram com os movimentos dos anos 1960. Em 2016, um grupo articulado de políticos, empresários e parte da sociedade brasileira criou uma manifestação cujo slogan foi “Tchau, Querida!”. Aqui o golpe foi regado a humor, a desinformações e a selfies intermitentes.
Com o golpe, um novo representante nacional vai a público declarar que veio para “desconstruir” o estabelecido. Floresce de todo lado tudo que lembra relativismo, intolerância, desinformação, negacionismo, discurso de ódio, pseudociência, necropolítica, preconceito e discriminação.
E o que estas manifestações têm em comum? Elas são manifestações de poder, de quem está no controle e dita os caminhos para continuidade do estabelecido. As manifestações também servem como instrumento de manutenção de privilégios e benefícios para determinados públicos e podem ser usadas como freios contra as tentativas para diminuir as injustiças e desigualdades sociais, políticas, culturais, jurídicas e educacionais existentes em uma determinada sociedade.
E assim, de manifestação em manifestação, o Brasil vai se construindo (ou se desconstruindo) como nação.
Cleonilton Souza é doutorando em Educação pela Universidade
Federal da Bahia, mora em Salvador, Bahia, e adora caminhar na
beira da praia ouvindo música.