Das formas vivas e suas lógicas próprias
(Foto: Bob Sousa)
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Fotos de Bob Sousa
“Muitas vezes se chega à verdade pelos caminhos mais absurdos.”
O iniciado do vento, Aníbal Machado
Em cartaz no Sesc Consolação desde 18 de janeiro e encerrando sua segunda temporada em 2 de março, Gesto constitui uma criação “à parte” no panorama teatral de São Paulo neste início de ano. O texto, de autoria de Silvia Gomez; a direção, a cargo de Vanessa Bruno; e o elenco do CPT-Sesc investem com muita cumplicidade na condução de uma atmosfera insólita de ponta a ponta do espetáculo, bastante desconcertante para quem se aventura a usufruir da experiência pela primeira vez.
Uma atmosfera insólita que não se limita em cena a configurar-se em uma teatralidade predominantemente lúdica, servindo, antes, de veículo para a exploração de significados metafóricos, alguns subentendidos, outros mais ocultos, sobre os quais repousa a obra. Gesto – como convém a um trabalho assim batizado – quer exprimir as coisas, mas se recusa a falar sobre elas. Quer expressar o insólito da fábula para confrontar o sólito da vida, transformando subliminarmente a oposição em equivalência: eis que o mundo que ocorre no palco é também o mundo de quem está sentado na plateia.
Segundo a dramaturga,
a obra tenta elaborar poeticamente a sensação tantas vezes inexprimível de instabilidade, violência e contradição traduzida em uma narrativa híbrida, entre diálogos e monólogos em delírio, em torno do sentimento de vertigem e impasse de uma época que observa a fase atual do capitalismo avançar como necrose sobre os corpos e a natureza.
A partir desse referencial imediato, o espetáculo expõe o espectador a um conjunto de situações fragmentárias, quase indevassáveis, movidas por tons de devaneios, sonhos e pesadelos e tecidas quase sempre em chave de metalinguagem.
Embora os sedimentos que movam boa parte da empreitada – Franz Kafka, Eugène Ionesco, Julio Cortázar, Silvina Ocampo, Murilo Rubião… – já façam parte da esfera do familiar para nós, Gesto, em seu conjunto, continua a nos soar estranho, porque não transforma tais referências em informações, em apoios discursivos. O que o espetáculo faz é diluí-las intensamente até as tornar voláteis.
Os conteúdos de denúncia das morbidades que nos cercam são por demais evidentes, e Gesto, então, instaura o mal-estar em cena como forma pura. Para André Breton, “o que há de admirável no fantástico é que ele não guarda mais nada de fantástico: não é outra coisa senão o real”. Talvez esse seja o maior dos assombros que essa singular criação possa causar: a irrupção de uma teatralidade perturbadora porque anômala.
É da anomalia de que trata Gesto, afinal. A vida é complexa e plural, mas também unívoca e opressora quando se reduz a normas, padrões e modelos, explícitos ou tácitos, que se impõem sobre seres, coisas e palavras e os conformam. Seja no âmbito da natureza, seja na esfera da vida social e política, é preciso atentar para o caráter inconformado, e disforme, da vida, e conectar-se com sua anormalidade.
Em A anomalia criativa, a filósofa francesa Camille Fallen lembra que “é sempre acompanhada de seu contrário que a norma constitui seus objetos”. Uma educação do espírito verdadeiramente transgressora haveria de combater então a lógica de oposições binárias que preside as ações humanas desde sempre, submetendo-as à tirania de valores antagônicos como normal e anormal.
Gesto é um pequeno tratado – não de caráter lógico-discursivo e, sim, de natureza hieroglífica – sobre a anormalidade, e a monstruosidade, e sobre os sentidos decorrentes delas. Há muita metafísica fora das normas naturais, lógicas e ontológicas. De Heráclito (“A natureza adora se esconder”) chega-se a Georges Canguilhem, para quem “as anomalias biológicas podem corresponder a mutações bem-sucedidas, que então estabelecem uma nova normatividade”.
De Thomas Kuhn (“A descoberta começa com a conscientização de uma anomalia, ou seja, com o reconhecimento de que a natureza de certo modo violou as expectativas suscitadas pelo paradigma que rege a ciência normal; continua com uma exploração, mais ou menos ampla, da área da anomalia e termina só quando a teoria paradigmática tenha sido readaptada de tal modo que o que aparecia como anomalia passe a ser aquilo que se espera”) a Michel Foucault, para quem são as anomalias literárias, isto é, “os atos transgressivos, solitários e precursores”, que antecipam a passagem de uma episteme a outra.
Como convém à arte do teatro – que, a despeito da brutalidade da vida, nunca deixa de professar, em chave positiva ou negativa, sua crença no homem –, o espetáculo investe no poder de transformação inerente às anomalias, procurando ativar junto a elas a imagem da esperança.
Da esperança universal de que o próprio teatro sempre é porta-voz. E de uma esperança bastante particular, no caso do CPT-Sesc, de que o trabalho de Antunes Filho frutifique, incorpore-se, talvez até mesmo transubstancie-se, rumo às gerações futuras. De modo discreto, indelével, Gesto procura catalisar o pensamento e o fazer teatral do encenador. A peça conta com alguns fragmentos de cenas em elaboração nos ensaios de Bonitinha, mas ordinária, de Nelson Rodrigues, que Antunes conduzia no CPT pouco antes de morrer, em 2019.
Assim, o encenador surge em cena convertido em paradigma de si mesmo, (i)mobilizado em seu eterno fazer – o que leva o espetáculo a privar da imagem do Uroboro (na grafia que Jorge Schwartz fixou para tratar da poética de Murilo Rubião), autofecundando-se. Uma forma disforme, anômala, monstruosa. Instada a mostrar o enigma de nossa condição.
GESTO
Sesc Consolação – Espaço CPT (7º andar)
Rua Dr. Vila Nova, 245 – Consolação, São Paulo
Quartas e quintas, às 20h
Ingressos: R$ 30, R$ 15 e R$ 9
Duração: 70 minutos
Classificação: 16 anos
Até 2 de março
Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero.