Danilo Santos de Miranda, o homem do Sesc
Danilo Santos de Miranda, sociólogo e diretor do Sesc SP (Foto Bob Sousa / Revista CULT)
Um homem que conecta empresariado e trabalhadores, artistas e público, pensadores, políticos e instituições culturais diversas. O sociólogo Danilo Santos de Miranda chegou ao Serviço Social do Comércio (Sesc) de São Paulo em 1968, assumiu a direção da instituição em 1984 e é reconhecido nacional e internacionalmente pelo trabalho que realiza como gestor cultural. Membro do conselho de instituições como a Fundação Bienal, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), o Itaú Cultural e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, sua atuação extrapola, e muito, as 36 unidades do Sesc que estão sob seu comando.
As mãos que assinam tantos documentos e operam o potente iMac evidenciam o vitiligo – doença de pele que deixa manchas claras – que é menos aparente no rosto. “Por isso uso essa barbinha, para aparecer menos e também porque protege um pouco do sol”, explica Danilo. “Mas não é um problema, nunca foi. Vitiligo, nem te ligo”, brinca, com o mesmo sorriso que atravessa diversas vezes sua fala pausada ao longo da entrevista.
O momento político no qual vivemos, para Danilo, tem os mesmos setenta anos celebrados pelo Sesc em 2016. A seguir, o sociólogo “sem nenhuma pretensão de explicar o Brasil”, como diz, conta histórias de sua vida e da instituição onde trabalha, ao explicar o Brasil. Mesmo sem pretensão.
CULT: O que está acontecendo no Brasil?
Danilo Santos de Miranda: Parece que estamos em um processo de transição que poderia abranger os setenta anos de história do Sesc. De um lado, a gente tem um desejo de modernizar, atualizar, avançar; do outro, um atraso intenso que precisa ser visto e atacado. Vou dar um exemplo: a questão de gênero e das orientações sexuais mais variadas. Elas têm amparo legal; o Brasil tem legislações avançadas: modernidade. Mas, na prática, o comportamento é atrasado. Mata-se homossexuais no Brasil ainda hoje. Então você tem o apelo da modernidade puxando de um lado, avanço, civilização. Por outro, a prática, acobertada muitas vezes pela sociedade e seus dirigentes, é atrasada. Até mesmo no judiciário você vê uma benevolência com muitos atrasos. Está aí a questão da corrupção, tão presente e forte na nossa realidade. Esse conflito entre o moderno e o atraso é quase a marca mais importante da nossa história. Quando o Sesc foi criado, no pós-guerra, vivíamos o grande processo de urbanização dos anos 1940. Havia industrialização intensa, mudança de governo, porque não tinha como manter a ditadura Vargas depois da Segunda Guerra. Então havia uma modernização na questão política, social, urbana, industrial, econômica. Tínhamos um esforço grande de valorização da identidade nacional desde o início do século 20 e isso talvez seja muito mais expressivo nos anos 1940. Surgem os grandes explicadores do Brasil: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado, seguidos depois por muita gente que tentou, nesse decorrer da primeira metade de século, explicar o país: quem nós somos? Esse negócio da nossa raiz branca, negra, indígena, o que isso significa? Como lidar com as vanguardas europeias? E o Brasil convivia, de um lado, com esse apelo para o atual, o moderno, o avançado. Sempre. E de outro lado, essa nossa atávica, digamos, reação pesada de atraso – manutenção do privilégio de poucos em detrimento de muitos –, que está presente na nossa realidade de maneira intensa. Não somos assim de hoje. Somos assim de muito tempo.
Essa leitura histórica do Brasil está presente no livro que você acaba de lançar na Flip, em coautoria com Mauro Maldonato, Na base do farol não há luz: cultura, educação e liberdade.
O Mauro Maldonato apresenta questões filosóficas muito interessantes: democracia, violência, guerra, ser humano, alteridade, principalmente a partir de autores da Europa. E no final, sem nenhuma pretensão de explicar o Brasil como aqueles grandes pensadores que enumerei, eu faço um comentário um pouco nessa linha do que estou falando aqui. Do ponto de vista de quem estudou, claro, tive oportunidades na vida, mas da posição de quem dirige uma instituição que reflete essas coisas o tempo todo. Porque não adianta a gente só fazer. Tem que pensar, aprofundar, discutir a realidade que vivemos hoje, com essa contradição entre o avançado e o atrasado, entre aquilo que nós desejamos implantar e o que na prática é possível adaptar e trocar. Já no título, o livro mostra um pouco essa contradição de algo que ilumina, mas tem o escuro. E eu considero o momento positivo, apesar de tudo. Estamos desvendando muita coisa. Claro que desagrada, é incômodo, cheira mal. Mas estamos lancetando muitos tumores. E é importante que aconteça. Não é contra fulano, contra sicrano ou contra um partido. É uma atitude civilizatória em que o Brasil avança. E aí tem dois movimentos interessantes: de um lado, o desejo de muitos que estão até sendo acusados de transformar o país efetivamente, sinceramente. É verdade e é importante que isso seja colocado. O acesso e a inclusão foram colocados como política central e isso é fundamental que se mantenha, contra tudo que tiver pela frente. Mais importante que a economia é dar condição às pessoas de viver de maneira adequada, o que leva a aspectos da economia, mas esse não é o único. Mas, por outro lado, toda a apropriação indevida de recursos públicos também tem de ser passada a limpo. Estamos vivendo os dois movimentos e essa dualidade é altamente positiva. Há um despertar da consciência de muitos grupos tidos como minoria. A questão das mulheres, de gênero, dos índios, que para mim é uma questão central, dos negros: a questão dos diferentes. E se levarmos em conta que o multiculturalismo brasileiro é algo absolutamente central, não tenho que me estranhar com as minorias, nem ninguém. Porque são parte de nós. Somos nós. E não é pelo fato de eu ter sangue só europeu ou só negro ou só índio que não participo desse todo. Participo também.
Você disse que não tem pretensão de explicar o Brasil. Que pretensão você tem?
De fazer exatamente o que eu faço, com muito orgulho. Minha história de vida é um pouco peculiar porque fui seminarista, jesuíta, e quando prestei o concurso para o Sesc, eu não sabia que podia encontrar um lugar, uma instituição, que de alguma forma mantivesse a essência do serviço à comunidade, do interesse público, de se voltar para um processo civilizatório. Pesquisando um pouco a história da instituição, havia um embate curioso de modelos que estavam sendo geridos no Brasil. De um lado, uma luta pela mudança social e, de outro, uma tentativa de fugir do modelo do comunismo, e mais uma aproximação com certa ideologia cristã da época. Juntando tudo isso, foi criado um documento básico chamado “A carta da paz social”, sobre a importância do processo civilizatório em favor dos trabalhadores, que não tinham organização suficiente na época para encetar uma ação desse nível e mais tarde vieram a fazer parte do conselho da instituição. Eu tinha que sobreviver, arrumar um emprego. E aos poucos, tanto no Sesc como no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), onde estive por um período, percebi o propósito do processo de educação, em que o serviço a favor da comunidade, o interesse público, prescindissem do interesse pessoal. Já estou aposentado pela previdência, claro que tenho planos para daqui a algum tempo não fazer mais isso, passar o bastão, isso faz parte da nossa realidade. Tenho 73 anos e não posso achar que continuarei fazendo isso a vida toda. Mas faço como se fosse estar aqui a vida toda.
Você insinuou planos de passar o bastão…
Eu insinuei?
Insinuou.
Claro, todo mundo tem que estar preparado para isso com bastante naturalidade. Isso para mim não é um problema, é uma decorrência natural da vida. Não tenho data, pessoa, dia, momento. Não existe isso. Eu sou, muito claramente, envolvido de corpo e alma nessa ação que eu realizo. Sou eleito por um voto, do presidente da Federação do Comércio. Do ponto de vista sucessório, não me cabe decidir quem vai sentar nesta cadeira depois de mim. Existe muita gente no Sesc preparada para isso ou se preparando de alguma forma, mesmo que não saiba. Nós temos um projeto de valorização gerencial, de dar condição às pessoas, inclusive para um aprimoramento permanente dos nossos processos gerencias, para que eles possam cada vez mais ser capazes de conduzir o que for necessário no nível deles e futuramente em muitos níveis, se isso vier a acontecer.
Você é diretor do Sesc São Paulo há 32 anos. Há alguma fragilidade institucional em ter a mesma pessoa no comando por tanto tempo?
Há fortalezas e fragilidades. Como tudo, é meio contraditório. Fortalezas: continuidade de projetos, implantação de políticas, fortalecimento de propostas e conceitos. Fragilidades existem no sentido de se acostumar a um modo de fazer, a ter uma vinculação com um segmento mais reduzido; a gente sempre tenta ampliar, mas corre esse risco. Procuramos nos corrigir o tempo todo, então lidamos com todas as instituições, variamos o máximo possível, com o cuidado de renovar sempre, procurando não nos fixar a hábitos arraigados, mas inovar. É uma luta permanente isso, devo confessar. O mundo da cultura exige, constantemente, esse cuidado com a renovação. Mantendo valores antigos, mas sempre abertos para a renovação, a inovação. A minha provocação eterna não é de manter uma liderança, uma hegemonia, mas sim manter nosso padrão de qualidade de maneira cuidadosa.
Quando você fala sobre o Brasil dos anos 1940 e o papel das instituições empresariais, penso que Paulo Freire iniciou sua trajetória na educação no Serviço Social da Indústria (Sesi) de Recife, em 1947.
Então, você vê que contradição curiosa: essas instituições são empresariais, são vinculadas ao modelo empresarial de estrutura de poder, mas elas são, de alguma forma, vocacionadas a cumprir sua missão civilizatória. Por isso cabe Paulo Freire, cabe pensar no melhor para a classe trabalhadora, operária. Naquele período, o Estado brasileiro não tinha condições de cumprir todas as suas obrigações. Então são fundadas algumas organizações, por proposta do empresariado, visando exatamente atender a demandas da população mais carente. E para o empresariado da época, houve o desejo claro de ter condições para o escoamento de sua produção, já que estamos falando de um processo de industrialização, comercialização, crescimento populacional e migração. Havia um mercado consumidor sendo formado. E, para consumir, é necessário ter condições, conhecimentos e recursos. O empresariado então inventa instituições ligadas à formação profissional, educacional, que são o Senai e o Senac, e ligadas a um projeto de bem-estar sociocultural dos trabalhadores, o Sesc. O sucesso dessas organizações só se daria efetivamente se elas cumprissem sua missão e não atendessem meramente aos objetivos empresariais. E, voltando à figura do Paulo Freire, desde o início ele compreendeu, lá no Nordeste, que a cultura é mais importante do que simplesmente a educação regular ou profissional. Paulo Freire fundamenta muito esse nosso trabalho no Sesc. O princípio fundamental educacional dele tem a ver com o entorno, a realidade, o dia a dia, os direitos, a capacidade de poder intervir no mundo. Algo que eu chamaria de cultura no sentido mais amplo. Essa noção de cultura, mais antropológica, diz respeito a tudo com o que o ser humano está envolvido, não apenas as artes e o espetáculo, que é uma parte mais sofisticada e nobre do mundo da cultura, mas lidar com uma série de outras coisas que mantêm o ser humano: a alimentação, o vestuário, o transporte, o dia a dia, a língua, a maneira como se relaciona, tudo isso faz parte da cultura no sentido ampliado. Você imagina, então, a educação, que nós muitas vezes entendemos como algo de caráter escolar, cercado nos muros da escola – amplia esse conceito de educação como algo que tem a ver com a vida do ser humano. É o mesmo conceito da cultura ampliada. Cultura e educação para mim são duas facetas de uma mesma realidade. Por isso, quando me perguntam o que fazemos no Sesc, digo que é educação.
BIANCA SANTANA é jornalista e autora de Quando me descobri negra (SESI-SP)
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