Cultura do estupro na USP

Cultura do estupro na USP

Pichação no muro do Cemitério do Araçá, zona oeste de São Paulo (Foto: Caroline Oliveira)

O caso mais exemplar e emblemático de denúncia de violência sexista dos últimos anos na USP é agora premiado com um título de médico
Nos últimos dias vieram à tona duas notícias aparentemente independentes entre si, mas profundamente implicadas. A primeira delas é que Daniel Tarciso da Silva Cardoso, aluno da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), acusado de dopar e estuprar ao menos três estudantes, está prestes a se formar. Já a segunda é que Maria Ivete Boulos, professora da mesma faculdade, foi afastada da coordenação do Núcleo de Estudos e Ações em Direitos Humanos (NEADH) da FMUSP, apesar de seu mandato estar previsto até 2017.

Ambas as notícias, em realidade, comprovam o que já é sabido: a indisposição e a incapacidade da FMUSP em lidar, adequadamente, com as sucessivas denúncias de violências sexuais envolvendo seu corpo discente. Alguém poderá alegar que isso seria assunto interno à USP e de interesse só das elites que têm o privilégio de estudar lá, mas não é bem assim. Elas refletem como o machismo, estrutural em nossa sociedade, guia as condutas não apenas de quem perpetra os atos de violência, mas também em quem fica indiferente ou mesmo tenta abafá-los.

A primeira denúncia contra o Daniel veio de uma estudante de enfermagem. Outras duas denúncias se seguiram. Depois de muita pressão e persistência, a FMUSP aceitou abrir uma sindicância e processo administrativo disciplinar para apuração. Tive a oportunidade de acompanhar uma das sindicâncias e ficou bastante claro, pela postura dos professores que participam da comissão sindicante, o intuito corporativista de proteger o aluno e a imagem da FMUSP  – mais do que, de fato, buscar a verdade do ocorrido.

Esse cerco de silenciamento e de omissões só começou a ser quebrado com a realização da CPI sobre as violações de direitos humanos nas universidades paulistas, realizada por iniciativa do então deputado estadual Adriano Diogo, na Assembleia Legislativa de São Paulo. O relatório da CPI apurou que “112 estupros em 10 anos terem sido cometidos no chamado “quadrilátero da saúde”, área da USP onde estão concentradas, no bairro de Pinheiros, na capital paulista, as faculdades ligadas às Ciências Médicas.

Além disso, a luta organizada das estudantes no coletivo feminista Geni e a coragem pessoal das vítimas foram fundamentais para criar uma pressão pública e repercussão de imprensa para esse caso. Diante desse cenário, também o Ministério Público de São Paulo passou a atuar mais fortemente tentando coibir a prática e mudar a postura da direção da FMUSP.

Por conta dessas iniciativas de combate à cultura do estupro tão normalizada e abafada naquele ambiente acadêmico, Daniel teve sua colação de grau suspensa e essa suspensão foi prorrogada. No entanto, no fim de outubro, a FMUSP fez a colação de grau de forma clandestina e secreta para evitar qualquer mobilização e afastou a professora Ivete Boulos por ela ter claro compromisso com a apuração dos fatos.

Agora, com o peso de todas essas acusações, Daniel poderá receber seu registro no CRM e exercer a profissão de médico. O caso mais exemplar e emblemático de denúncia de violência sexista dos últimos anos na USP é agora premiado com um título de médico.

Daniel ainda não foi condenado na Justiça, mas as acusações contra ele são graves e consistentes o suficientes para que, ao menos, as autoridades acadêmicas adotassem uma postura mais rigorosa para não permitir que a injustiça fosse o único horizonte dessas vítimas. Ele é réu na Justiça Comum e ainda será julgado, mas nada mais pode ser aplicado de punição no âmbito administrativo com sua colação de grau.

A Rede Não Cala de Professoras e Pesquisadoras da USP pelo fim da violência sexual e de gênero soltou nota pública em que sintetiza bem essa postura omissa para não dizer conivente da instituição: “A omissão da Universidade tem sido justificada pelo receio de se cometer injustiça com os possíveis agressores. Questionamos porque a universidade não teme cometer injustiça com as possíveis vítimas. Do ponto de vista institucional, precisamos também indagar o que compromete mais o nome da Faculdade: revelar tais casos ou proteger quem cometeu uma agressão? Além deste caso, muitos outros tramitam na Universidade ou acontecem e não são denunciados, por diversas razões – por medo, descrença na efetividade da ação institucional, predomínio da impunidade em casos de violência no país”.

Uma universidade que mereça esse nome não pode consagrar a impunidade de graves violências de gênero. Não basta prover formação técnico-profissional a seus alunos, é preciso educar para uma postura ética de vida e para o respeito aos direitos humanos. Uma universidade que “elimina” (esse é o termo do decreto 52.906/72 do Regime Disciplinar  da USP herdado da ditadura) estudantes simplesmente por participarem de ocupação da reitoria, agora premia suspeito de graves crimes sexuais. É preciso denunciar e não permitir que a USP consagre, desse modo, a cultura do estupro.

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