A cruzada psíquica das crianças em “Eu, capitão” e “Zona de interesse”

A cruzada psíquica das crianças em “Eu, capitão” e “Zona de interesse”

 

Conta a lenda que, durante a Idade Média, um grupo de crianças partiu em direção à Jerusalém em uma cruzada que chegaria por força e fé à terra prometida. A cruzada contava com mais de sete mil crianças que jamais retornariam ao lugar de onde partiram. Conta-se também que aquelas que não foram escravizadas morreram de fome ou de frio. Marcel Schwob (1867-1905) restituiu de forma poética o sentido da lendária cruzada das crianças sob a perspectiva fragmentada dos militantezinhos e de algumas supostas testemunhas. Muitos anos depois, a tragédia é recontada por Bertolt Brecht (1898–1956) nas roupagens sujas de sangue da Segunda Guerra Mundial:

pequeninos mui famintos
em tropinhas se juntavam
atraindo mais crianças
das ruínas que o cercavam.
A menina de nove anos
segurava a de quatro
parecia ser a mãe
só faltava o ar pacato. […]
Buscando a terra da paz
sem as bombas estourando
atrás de um novo país
vai crescendo assim o bando.

A insistência no tema das Cruzadas das Crianças ressurge em Eu, capitão, filme do italiano Matteo Garrone que narra o drama dos jovens Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall) quando eles decidem partir do Senegal em direção à Europa em busca de um sonho de vida em condições altamente idealizadas. No filme, indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2024, os meninos enfrentam as tormentas do deserto, do mar, dos homens em uma saga hipnotizante e explícita do drama dos refugiados. A narrativa é tão rente aos personagens e aos obstáculos por eles enfrentados que até perdermos de vista as razões que, de fato, povoam densamente ─ e não só de crianças ─ o barco que parte para a Itália e do qual Seydou é o capitão.

Se falta ao espectador figurabilidade para compreender o sentido de infância contra-hegemônica, termo cunhado pela psicanalista Ilana Katz, Eu, capitão é uma boa indicação de que “a criança” e “a infância” não existem fora do plural. Infâncias e crianças têm a vida enraizadas esteticamente na materialidade dos lugares em que vivem, mas nutrem parte de seus desejos e brincadeiras na moldura do colonizador.

A mãe de Seydou, antevendo a fuga do filho, explicita o risco do desenraizamento ao qual o menino está exposto quando diz “preciso de você aqui, respirando o mesmo ar que eu respiro”. No entanto, é somente quando estão confrontados com situações limites para a vida e o sentido dela, com a corda da âncora já esgarçada demais, que os jovens alucinam, deliram e sonham na língua e na realidade maternas que compartilham, representadas no filme como pequenos suspiros de realismo fantástico.

Ambientado em outro contexto histórico, Zona de interesse, que também concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro de 2024, do alemão Jonathan Glazer, narra da perspectiva da vida doméstica do casal Rudolf e Hedwig Höss o cotidiano dos arredores do campo de concentração de Auschwitz, comandado pelo patriarca que foi posteriormente condenado pelo extermínio de cerca de 3 milhões judeus. O filme começa no escuro e abre para um plano amplo, estático, quase enjoativo, de um piquenique da família Höss na beira do rio. Das muitas formas narrativas que conhecemos e que tentam dar conta do que foi Auschwitz, a aposta do filme está em descrever a barbárie em negativo, dando à banalidade do mal contornos estéticos e materialidade precisos.

Na casa dos Höss, que faz divisa com o campo de concentração, acontecem as reuniões de otimização da engenharia das máquinas de extermínio, o aniversário das crianças e a inauguração do jardim com o mesmo afeto e entusiasmo. Hedwig, interpretada pela espetacular Sandra Hüller, prova as roupas sequestradas das novas prisioneiras, folheia revistas de moda e mostra, durante a visita da mãe, a sua casa como a realização de um sonho. As notícias da barbárie parecem se inscrever somente no espectador, na mãe de Hedwig e nas crianças da família. Por meio da fumaça, das cinzas, do clarão alaranjado das chamas que faz sombra no quarto e de um barulho estrondoso presumido, ficamos, junto às crianças, sonâmbulos em busca de um índice de realidade que confira sentido àquilo.

Em Zona de interesse, vemos uma anticruzada que é realizada com um esforço apático de não atribuir sentido às percepções do que rodeia a casa e que terminam por desalojar a criança do próprio corpo às custas de sua capacidade de dormir. Sem nenhum estardalhaço, a filha pequena passa as noites em estado de sonambulismo, perto de algum vão da porta que possibilite visualizar a chaminé do complexo de Auschwitz.

Recolhida pelo pai que perambula como um bom soldado, a menina diz em estado crepuscular “Estou distribuindo açúcar”, ao que o pai pergunta “a quem?” e ela diz “estou buscando”. Na sequência, vemos uma menina que penetra escondida pelos arredores do campo distribuindo maçãs. Ilustrada como o negativo de uma foto, sua forma ambígua não nos permite discriminar se a menina sonha, alucina ou simplesmente reverbera o sonho de outra criança. O meninos brincam com lanternas fazendo um jogo de sombras que se mistura ao clarão da máquina de extermínio e o bebê chora estridente e ininterruptamente de frente à babá que não consegue reagir. Ninguém dorme.

Se as infâncias são muitas, as formas de perdê-la antes do tempo ─ núcleo das experiências traumáticas ─ variam com a mesma diversidade. Seja pela explicitação da violência e do desamparo como acontece com os meninos de Eu, capitão, seja pela recusa em atribuir sentido e, a bem dizer, a recusa da própria alteridade como acontece em Zona de interesse. Restituir as cenas traumáticas, ainda que de forma ficcional, é um modo de recuperar o sentido de um território da infância que ficou perdido e dar o testemunho do caráter corrosivo do mundo que construímos para as crianças viverem.

Marília Velano é psicanalista, mestre em psicologia pela Université Paris VII, doutora em psicologia pela USP e professora do Departamento de Psicanálise com crianças do Instituto Sedes Sapientiae. É autora do livro Razão onírica, razão lúdica: perspectivas do brincar em Freud, Klein e Winnicot (Blucher, 2023).


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