Crise nas infinitas terras

Crise nas infinitas terras

Há pelo menos duas descrições alternativas e opositoras para o Tio Sam: ele é o ícone do maior império capitalista mundial ou um símbolo desacreditado da democracia liberal da América

A minissérie em quadrinhos U. S. Tio Sam, escrita por Steve Darnall e Alex Ross – que também faz a arte – foi publicada no Brasil em outubro de 1998 (Abril Jovem). A história, subdividida em duas edições, apresenta uma ficção política na qual um dos mais conhecidos ícones culturais do mundo, o Tio Sam, realiza uma involuntária e extemporânea jornada ao âmago da nação que representa: os Estados Unidos da América do Norte. A viagem de um andrajoso Uncle Sam através da história e pelas ruas dos Estados Unidos é assolada pela constatação desoladora de que o sonho americano tornou-se tétrico e a terra da liberdade, inóspita.

A figura do Tio Sam obteve projeção internacional quando os EUA – aliás, no original em inglês “U.S.”, como uma dupla referência a United States e Uncle Sam – romperam a neutralidade e ingressaram na Primeira Guerra Mundial. Entretanto, essa não é a única versão do lendário personagem. A austera e intimidadora imagem do Tio Sam de 1917, convocando homens para o exército norte-americano, celebrizou-se por meio de um cartaz, amplamente difundido nos EUA e em diversos outros países, no qual aparecia um homem branco, grisalho e de olhar severo, trajando terno e cartola nas cores vermelho, azul e branco, com o dedo indicador em riste conclamando: “I want you for U.S. Army!”. Essa famigerada figura foi criada por James Montgomery Flagg.

 Para evitar mal-entendidos, é preciso notar que Tio Sam já fazia parte da história e da cultura norte-americanas bem antes de sua “participação” na Primeira Grande Guerra. A origem do nome Uncle Sam é atribuída a um episódio ocorrido no início do século XIX, enquanto EUA e Reino Unido se confrontavam pela segunda vez na guerra de 1812-1814. Sam Wilson, um dos fornecedores de carne para o exército norte-americano, também era conhecido pelo apelido de Uncle Sam. Como as iniciais de sua alcunha “US” eram as mesmas usadas para identificar algo que fosse “propriedade do governo”, em pouco tempo as pessoas jocosamente ou espirituosamente passaram a sinonimizar US como Uncle Sam / United States. Já em relação ao desenho do personagem, grosso modo, o que ocorreu foi uma “sofisticação” na sua imagem original de 1838 – que antes era caricatural, visto que sua área de atuação primeva era a dos cartoons políticos de Thomas Nast – e uma alteração em suas funções, pois antes ocupava uma posição de crítica e de destaque em relação aos problemas estritos de seu país, satirizando-os; a partir dos resultados da Primeira Grande Guerra e da reconfiguração da ordem mundial, quando os EUA emergem como potência econômica e política, a figura passa a simbolizar, para o resto do mundo, primeiro, os ideais e a força deste país e, depois, o imperialismo.

Há também um Tio Sam criado por Will Eisner e Lou Fine. Trata-se de um super-herói que “militou” do início da década de 1940 até o final de 1944 sob o selo da antiga editora Quality Comics. Essa versão do Tio Sam incorporava o espírito da nação americana, possuía superforça, um certo grau de invulnerabilidade e era capaz de viajar para outras dimensões através de vórtices tricolores (azul, vermelho e branco). Tais poderes eram idealisticamente derivados da consciência americana e declinavam à medida que o povo americano perdia a fé na sua nação. Ele também foi líder de um grupo de super-heróis cognominados Combatentes da Liberdade [Freedom Fighters], que lutaram e detiveram os nazistas num mundo alternativo, uma distópica Terra-X, onde a Segunda Guerra Mundial durou mais tempo do que em nossa realidade e foi vencida pelos países do Eixo.

Diferentemente dos ícones predecessores homônimos aqui citados, o Tio Sam de Darnall e Ross não ostenta uma imagem austera e tampouco um ideário definido. Ele sequer tem consciência de sua identidade: não sabe se é um mendigo ébrio e alucinado vagando pelas ruas ou o espírito decadente da nação “desgastado pela autodestruição da América” e pelas doenças sociais – como adverte Ross. A busca por sua identidade faz com que Sam seja atormentado tanto por devaneios de um passado verídico e cruel da história dos EUA quanto por traumas hodiernos que proliferam pelas ruas do país: o genocídio dos nativos americanos, a escravidão, o racismo, a intolerância sexual e religiosa, a corrupção, o desemprego, a violência, os assassinatos de Abraham Lincoln, John Kennedy e Martin Luther King, os generais latifundiários e os fazendeiros destituídos de suas propriedades, o poder midiático capitalista, os imigrantes explorados, a obsolescência de produtos e valores, os horrores da Guerra de Secessão, a Ku Klux Klan, as leis que beneficiam grandes corporações em detrimento dos pobres, as campanhas difamatórias e a perseguição política no macarthismo, o intervencionismo militar para garantir “interesses americanos” no México, na Nicarágua, na China, na República Dominicana e no Golfo Pérsico, Sacco e Vanzetti, Joe Hill e os Nove de Scotsboro, o crime organizado, Daniel Shays e a milícia de Massachusetts em 1786, os policiais de Chicago em 1893, a Guarda Nacional em 1970… Não há como escapar incólume. Sam é ao mesmo tempo o protagonista da violência em profusão e o espectador involuntário de uma miríade de injustiças. E a possível redenção reside justamente em sua capacidade de reconhecer e assumir a responsabilidade por tais atos.

Embora o propósito deste texto seja relacionar, ainda que de modo breve e lacunar, tópicos do comic book U.S. Tio Sam com algumas idéias dos dois principais filósofos políticos americanos da contemporaneidade, John Rawls (1921 – 2002) e Robert Nozick (1938 – 2002), nessa ocasião restringiremos nossa exposição ao tema da liberdade. Entretanto, antes de indicarmos certos aspectos teóricos extraídos de Uma Teoria da Justiça (1971) e Anarquia, Estado e Utopia (1974), obras produzidas na Colúmbia – ora cognominada América –, faremos uma rápida digressão para situar o tema da liberdade na Britannia, com Sir Isaiah Berlin (1909 – 1997). No ensaio Dois conceitos de Liberdade (1958), Berlin afirma que é necessário distinguir entre dois tipos de liberdade: a negativa, compreendida como ausência de coerção, e a positiva, compreendida como possibilidade de auto-realização – isto é, plena e autodirigida, sem os impedimentos das forças culturais e sociais. Uma vez que os propósitos e os direitos do indivíduo (cidadão) nem sempre se coadunam com os objetivos definidos de uma sociedade estruturada (Estado), as duas noções de liberdade inevitavelmente se opõem.

Na interpretação de Darnall e Ross, há pelo menos duas descrições alternativas e opositoras para o Tio Sam: na primeira, ele é o ícone do maior império capitalista mundial, os Estados Unidos, que sempre apela à verdade (truth) – a sua verdade absoluta – para, conforme os seus interesses político-econômicos, “justificar” todos os eventos trágicos anteriormente mencionados; na segunda, ele é um símbolo desacreditado da democracia liberal, da América, cuja idéia de responsabilidade social reside sobretudo no primado da liberdade (freedom) para todos. Assim, ocorre um inevitável gládio: a força versus o diálogo. A aposta dos autores desse romance gráfico reside no Tio Sam que personifica a liberdade – aliás, que caracteriza uma dentre as possíveis faces da liberdade. Em conformidade com descrição oferecida na saga imagético-textual, o outro Tio Sam, o que personifica a verdade, é justamente o amálgama de tudo o que obsta as liberdades individuais: trata-se de uma espécie velada de Estado totalitário.

Para Rawls, um Estado democrático liberal deve garantir justiça social. O ideal de justiça – um dentre os vários possíveis – esboçado por ele propõe assegurar que os membros de tal sociedade sejam providos com direitos básicos e oportunidades mais ou menos iguais. A configuração dessa sociedade teria como ponto de partida dois princípios fundamentais de Justiça: primeiro, o estabelecimento de direitos básicos; segundo, a igualdade de oportunidades (também chamado de “princípio da diferença”). Assim, na sua teoria da justiça como eqüidade, temos respectivamente um princípio de liberdade e um princípio de igualdade. Para combater as antinomias da sociedade democrática, particularmente aquelas que envolvem justiça / injustiça e opulência / miséria, Rawls propõe que os socialmente mais favorecidos atuem, de maneira altruísta, no sentido de reparar as desigualdades que afligem os socialmente desfavorecidos. Na prática, isso implica o fato que uma parcela significativa da população teria de abdicar de forma consciente e benevolente de alguns privilégios e vantagens materiais, obtidas de forma legítima – por mérito, herança, virtude – em prol dos desvalidos.

Nozick, por sua vez, ao analisar o Estado moderno, critica as teses políticas do conservadorismo, do liberalismo e do socialismo, que em instâncias distintas e por intermédio de ingerências diferentes acabam por violar os direitos individuais das pessoas. E, em conformidade com os termos definidos por Nozick, infringir os direitos do indivíduo equivale a atentar contra a sua liberdade. Então, em contrapartida, ele defende a noção de um Estado Mínimo – um modelo político-econômico utópico – compatível com uma ética libertariana baseada nos direitos, legítimo e moralmente justificado, pois, nesses termos, qualquer outra concepção mais abrangente de Estado inelutavelmente violaria os direitos (pessoais e de posse) do indivíduo. Trata-se de uma limitação considerável nas funções do Estado, que ficam praticamente restringidas à defesa de seus cidadãos contra possíveis ataques (violência, roubo, fraude etc.) de outros indivíduos ou grupos.

Nozick, contrário à idéia de justiça distributiva, assevera que na teoria rawlsiana existe uma incompatibilidade entre os dois princípios fundamentais que constituiriam uma sociedade realmente justa: o princípio da diferença colidiria com o primeiro princípio, na medida em que, ao abdicar de seus talentos naturais ou de posse legítima (“justamente adquirida” ou “justamente transferida”), o indivíduo estaria sofrendo um tipo de intervenção em sua liberdade. Desse modo, Nozick acusa Rawls de não defender a liberdade como o valor maior em qualquer sociedade, mas de eleger a igualdade como o valor supremo.

Embora haja nítidas divergências entre as teorias sociais de Rawls e Nozick, podemos entrever nos escritos de ambos um forte antagonismo ao tipo de regime político-econômico e de organização social “representado” pelo Tio Sam da verdade totalitária. Assim, tal como o Tio Sam idealizado para reivindicar sua “consciência social sobre a América”, na visão de Darnall e Ross, a noção de liberdade defendida por Rawls e Nozick nem sempre possui traços definidos e conciliadores: seus matizes, assim como seus contrastes, ora advêm do libertarismo, ora do liberalismo.

Heraldo Aparecido Silva
pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia Americana (Cefa) e doutorando em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Pensando a América

– Cavell, S. Esta América, ainda inabordável. São Paulo: Ed. 34, 1997.

– Ghiraldelli Jr., P. Richard Rorty – A filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos. Petrópolis: Vozes, 1999.

– Rorty, R. Para realizar a América. Trad. Paulo Ghiraldelli Jr., Alberto Tosi Rodrigues e Leoni Henning. Rio de Janeiro: DPA, 1999. 

– Rorty, R. Contra chefes, contra oligarquias. Rio de Janeiro: DPA, 2000.

– Rorty, R. Ensaios sobre Heidegger e outros: escritos filosóficos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.

– Rorty, R. Objetivismo, relativismo e verdade: escritos filosóficos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.

– Thoreau, D.H. Walden ou A vida nos bosques e a Desobediência civil. São Paulo: Aquariana, 2001.

 Sites:

– Portal Brasileiro da Filosofia – revista on-line: www.filosofia.pro.br

 – Pragmatism Archive – www.pragmatism.org

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